sábado, 25 de setembro de 2010

Brasil: as feridas ainda abertas de uma potência em ascensão

A miscigenação do Brasil
Manuel Carvalho
A violência urbana, a infra-estrutura arcaica, os danos de um sistema político clientelar ou a dependência das matérias-primas são o lado B do Brasil.
Quando Luís Inácio Lula da Silva iniciou a corrida que o levaria ao Palácio do Planalto, o risco-país do Brasil prenunciava o corte do crédito internacional e uma nova ofensiva do FMI para meter as contas do Estado em ordem. Este ano, o Brasil emprestou 14 mil milhões de euros à instituição. Em 2001, ano de eleição de Lula, as taxas de juro situavam-se nos 45 por cento. No final do ano passado, estavam nos 8,75 por cento. Se a estas façanhas juntarmos o facto de dez milhões de brasileiros terem saído da pobreza para engrossar a fileira da classe média, a revolução agrária que colocou o país no topo da produção mundial de bens alimentares ou a conquista iminente do quarto lugar da indústria automóvel (à frente da Alemanha...), pode, com justiça, afirmar-se que a profecia feita em 1941 Stefan Zweig se cumpriu: o Brasil não é o país do futuro, é já uma potência do presente. E Lula da Silva, um operário metalúrgico que, há uma década, era tido como um líder da esquerda terceiro-mundista, aparece agora como obreiro de um milagre. O seu lugar na galeria dos heróis nacionais está já garantido ao lado de Juscelino Kubitschek, o presidente que lançou a industrialização e criou Brasília (e que também deixou um rasto de dívida pública que estaria na origem da ditadura militar e da inflação descontrolada).
Há, no entanto, em todo este cenário festivo, zonas cinzentas que levam muitos a amenizar a euforia. Uma espécie de "sim, mas" que aponta para as fragilidades de uma potência com pés de barro. O relatório global de competitividade do World Economic Forum, que é um guia imprescindível para os investidores internacionais, espelha bem essa condição, ao colocar o Brasil no segundo patamar do desenvolvimento económico, ao lado de países como a Turquia, a China ou Cabo Verde (Portugal integra o pelotão das economias avançadas que dependem da inovação). O Brasil, que é considerado aí a 58.ª economia mais competitiva do mundo (Portugal está na 46.ª posição), peca por ter níveis de educação débeis, uma infra-estrutura pouco desenvolvida e, principalmente, pela má qualidade das suas instituições (93.º lugar mundial) e pela pesada burocracia, que trava a eficiência dos mercados.
A avaliação deste componente aponta directamente para o sistema político e o sistema eleitoral, que desde 1991 foi alvo de 283 propostas de reforma sem grande sucesso. O principal flanco dos que propõem mudanças de fundo relaciona-se com as listas abertas para deputados, nas quais os eleitos são os donos dos seus mandatos e não respondem a qualquer regra de disciplina partidária. Com esta liberdade de acção, os deputados podem mudar de partido, desde que conservem a sua base eleitoral de apoio, de programa. O escândalo do "mensalão" é produto desta liberdade, que levou vários deputados a apoiar os projectos do Governo em troca de subornos.
Casos como estes abundam no Congresso e em toda a máquina pública federal e local. Francisco Wellfort, sociólogo que fundou o PT e foi ministro do Governo de Fernando Henrique Cardoso, calculou que a "bancada do crime", composta por eleitos com antecedentes criminais em partidos "nanicos" (de fachada), chegou a representar dez por cento dos 513 depurados federais.
Esta falta de transparência na política corrói não apenas as estruturas de deliberação e decisão política como toda a cadeia administrativa. Investidores internacionais queixam-se de que o ambiente para os negócios é mau e o relatório do Banco Mundial Doing Businesscomprova-o: o Brasil está no lugar 129 numa lista de 183 países. Para os autores do relatório, fazer negócios no Brasil é mais difícil do que na Nigéria. Ao nível da corrupção, medida pela Transparency International, o Brasil está ao lado da Colômbia, do Peru ou do Suriname.
O paradigma chinês
Custa, por isso, a perceber como é que, neste ambiente, houve empresas brasileiras a engrossar o leque da nova geração de multinacionais criadas nos países emergentes. A verdade é que os exemplos de sofisticação empresarial abundam. A Embraer é uma empresa modelo na aeronáutica civil internacional; a Companhia Vale do Rio Doce é a maior produtora mundial de minério de ferro, o segundo maior empório mineiro do mundo e o seu principal accionista, Eike Batista, o sétimo mais rico do planeta, de acordo com ranking da Forbes; a JBS é a maior empresa do comércio mundial de carne; a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), que recentemente comprou a Cimpor, é um dos maiores colossos mundiais do sector; e o Banco do Brasil é, com vantagem, a maior instituição financeira da América Latina. Porquê insistir então nos pés de barro da economia do Brasil?Além da ineficiência do sistema político, o Brasil continua a ser um país incapaz de aproveitar o potencial do seu mercado de 190 milhões de pessoas. A violência endémica e uma das mais altas taxas de desigualdade do mundo travam os ganhos associados a uma classe média de consumidores vigorosa, como acontece nos países ricos.Depois, a infra-estrutura brasileira é, em muitos casos, arcaica e penalizadora da economia. A rede de caminhos-de-ferro é escassa e decrépita, embora haja projectos para uma ligação em alta velocidade entre São Paulo e Rio de Janeiro; da rede de estradas, apenas 10 por cento dos percursos estão asfaltados e no mapa do Guia 4 Rodas, o mais usado no Brasil, continua a haver troços no interior onde se chama a atenção do viajante para a probabilidade de assaltos. Apesar do seu potencial agrícola, os custos de transporte e da operação portuária tornam a soja brasileira mais cara no mercado mundial do que a produzida na Argentina ou nos Estados Unidos.
Outro retrato que ensombra o futuro do Brasil está na excessiva dependência da exportação de matérias-primas, ao contrário de países desenvolvidos como a Alemanha ou o Japão ou até membros do grupo dos BRIC (expressão cunhada por Jim O'Neill em 2001, da Goldman Sachs, para designar o Brasil, Rússia, China e Índia). Numa comparação feita por Martin Wolf, o influente colunista do Financial Times, os recursos naturais representam 48 por cento das exportações brasileiras, contra 63 por cento da Índia ou uns expressivos 93 por cento da China. Apesar da qualidade da sua indústria e da sua engenharia de ponta, o potencial exportador do Brasil está longe de se poder comparar com rivais directos.
Também ao nível do financiamento da economia, há razões para acalmar eventuais excessos de euforia. A dívida pública brasileira está situada nuns aceitáveis 42 por cento do total da riqueza nacional (PIB) e as leis de responsabilidade fiscal aprovadas no Governo de Fernando Henrique Cardoso e cumpridas nos mandatos de Lula travaram derrapagens na despesa e no défice público que, como aconteceu antes de 1994, prenunciam crises de pagamentos internacionais, espirais inflacionistas ( 2950 por cento ao ano, no começo da década de 90), ou escassez de reservas para segurar a moeda. O problema está, de acordo com especialistas internacionais, nas taxas de poupança interna. Ou seja, no montante de recursos financeiros que o país pode, por si próprio, gerar para financiar os seus investimentos. A taxa de poupança brasileira ronda os 15,8 por cento do PIB. Na China, por exemplo, esse valor sobe para 54,3 por cento. Por outro lado, e apesar da explosão das exportações, o Brasil continua a comprar mais ao exterior do que vende. O défice externo do país atingiu em 2008 24,3 mil milhões de dólares (contra um superávite chinês de 283 mil milhões).
Face a constrangimentos com esta dimensão, é fácil perceber por que razão o crescimento económico do Brasil continua longe do dos membros mais dinâmicos dos BRIC ou de outros "tigres". Na última década e meia, a economia cresceu uns muito razoáveis 2,9 por cento ao ano, o que deu para financiar os programas sociais do Estado, para as empresas ganharem músculo e se internacionalizarem ou ainda para se criarem 14 milhões de postos de trabalho. Mas, dentro do próprio Brasil, os economistas não acreditam que haja condições para sustentar o espectacular crescimento de 9 por cento no primeiro trimestre do ano. Ainda assim, as metas para 2010 oscilam entre os 5,5 por cento e os sete por cento, muito próximo do fenómeno chinês.Outrora designado por Belíndia, uma mistura da Bélgica com a Índia de outrora, o Brasil evoluiu de uma forma que ninguém poderia prever há apenas dez anos, mas permanece longe das economias mais dinâmicas. Entre 1995 e 2009, citando-se de novo Martin Wolf, a riqueza nacional per capita no país cresceu 22 por cento, contra 100 por cento da Índia e 226 por cento da China. Para poder dar um novo salto, o Brasil tem de investir muito nas suas infra-estruturas, na educação, no combate às desigualdades e à violência urbana ou no seu sistema político decrépito, colonizado por uma das piores classes políticas do mundo. Metade do caminho está feito, mas, até que o sucesso se consolide, ainda há muito para andar.
Manuel Carvalho, Público, 25-09-2010
As carências do Brasil

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