domingo, 24 de outubro de 2010

O presidente ofende quem foi atingido e convalida o comportamento desviante de quem agrediu.

A grande questão não é o que acertou a cabeça de José Serra em Campo Grande, mas o que há na cabeça do presidente Lula. É assustador que ele não perceba o perigo de usar toda a sua vasta popularidade para subestimar um episódio de conflito físico entre grupos que disputam o poder. Se ele brinca com fato grave, o que está avisando é que esse tipo de atitude é aceitável.
Não é. Cada lado tem que ter segurança e garantia de fazer a sua festa, a sua passeata, o seu comício em paz. Quem organiza um grupo para interceptar a caminhada do grupo concorrente na disputa política sabe que há risco de que tudo fuja ao controle. O que houve já foi sério o suficiente, mas poderia ter sido ainda pior. Felizmente, há tempo de aprender com esse episódio.
A paixão eleitoral é natural, o maniqueísmo do segundo turno é emburrecedor, o confronto entre as partes só é aceitável se ficar no campo das ideias e propostas. Quem vai com um grupo organizado para hostilizar o adversário no meio da sua caminhada sabe que os ânimos podem ficar exaltados. Desta vez, foi uma pedra na cabeça de uma jornalista, e o rolo de fita na cabeça do candidato José Serra. Esse episódio deve ser visto pelo risco potencial de conflito generalizado. As imagens falam por si. O que mais poderia acontecer numa refrega de rua? No Paraná, a candidata Dilma Rousseff, no dia seguinte, foi alvo — felizmente quem lançou errou a pontaria — de balões de água. Esse é exatamente o ponto em que o chefe da Nação precisa pedir calma aos dois lados, lembrar os valores democráticos, e a melhor atitude na disputa política. Mas é exatamente neste momento que o presidente ofende quem foi atingido e convalida o comportamento desviante de quem agrediu. Ao tratar com leviandade um assunto sério, incentivou a militância a repetir o comportamento, escalou o conflito e deseducou o cidadão.

Essa campanha eleitoral está deixando cicatrizes nas instituições. Um presidente da República não deve fazer o que o presidente Lula tem feito. Não deve usar a máquina, a Presidência, o poder em favor de um dos candidatos dessa forma e com essa força. Claro que Lula tem um lado, um partido e uma candidata. Pode e deve explicitar isso. Seria estranho se não o fizesse. Mas a Presidência da República não pode ser usada como braço do comitê de campanha. Existe uma linha divisória que Lula nunca quis ver. E esse comportamento errado do ponto de vista institucional se repetiu durante toda a campanha. Em alguns momentos, os atos inadequados do presidente ficaram evidentes. Esse episódio deixou claríssimo o que não se deve fazer. Que as pessoas que vierem a ocupar este cargo no futuro vejam nas atitudes do presidente Lula de 2010 exemplos do que não fazer, não repetir.
O risco é que seja visto como natural daqui para frente o governo usar órgãos públicos para espionar adversários políticos; órgãos públicos, estatais e agências serem partidarizadas de maneira abusiva; o presidente não ter freio institucional. Não se acostumar com o erro repetido é a única garantia que se tem em momentos assim.
Quem já viveu sem democracia sabe o valor de cada ritual, limite, processo. Quem nunca viveu não tem como ver os riscos quando eles surgem com seus sinais antecedentes. Por isso é natural que os mais jovens pensem ser um exagero da oposição ou concluam que o episódio de Campo Grande não foi nada. Afinal, como ninguém se feriu seriamente, que problema tem? Podem pensar que se o presidente acha que o candidato da oposição é um farsante como aquele jogador de futebol isso é só mais um jogo, mais uma pelada no campo político. Se os mais jovens forem displicentes, é até compreensível. Um homem nos seus 65 anos, que viu o que o presidente Lula já viu no país, só brinca se não estiver levando a sério o cargo que ocupa, a faixa que recebeu, o poder que tem.
Hoje, os riscos institucionais não vêm mais dos quartéis, como se sabe. As Forças Armadas não conspiram contra a ordem democrática e isso é um salto extraordinário que o país deu com a contribuição de inúmeras pessoas e com o sacrifício de muita gente. Hoje, os riscos são outros, tem novas origens, e métodos diferentes.
Está em moda na América Latina demolir as instituições por dentro, minar a democracia, enfraquecendo o sistema de pesos e contrapesos, descaracterizar os poderes até eles ficarem irreconhecíveis, controlar a imprensa para não ouvir o contraditório. Felizmente, isso não acontece em todos os países, mas os casos em que esse processo está em curso são tão notórios e assustadores que qualquer pessoa que tenha passado pela experiência da ausência de democracia é capaz de ver. Certos governantes começam fazendo chacota de coisas graves, como Hugo Chávez. Ele xingou adversários políticos ou contou piadas e pôs apelidos supostamente engraçados para desacreditá-los. Isso, no princípio. Depois, ficou muito pior. Cristina Kirchner começou falando mal dos jornais e agora fala em estatizar a imprensa. Todos os que escolhem esse desvio político tentam intimidar a oposição para depois tentar exterminá-la.
Nenhum desses governantes do barulho da América Latina sabe o limite no uso dos órgãos e empresas públicas para objetivos políticos porque essa é uma poderosa ferramenta para minar o que mais os ameaça: o princípio da alternância no poder.
Como já escrevi nesse espaço, numa democracia não importa quem ganha a eleição, mas como se ganha a eleição. Se o presidente Lula conseguir seu objetivo tão almejado de fazer Dilma Rousseff sua sucessora, que seja pelos méritos de ambos, e não pelos erros e desvios dessa triste campanha.
Míriam Leitão

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.

Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.

Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-