segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Pombas têm melhor fama, mas falcões fazem milagres

Pombas


Quem via em João Paulo II um avozinho olha hoje para Bento XVI e vê um mestre-escola. E se o polaco era amado, o seu sucessor alemão é sobretudo temido. Mas a história está farta de mostrar que as grandes mudanças não nascem das pombas e sim dos falcões. Ao admitir o uso do preservativo em certos casos, o Papa desmente todas as teses sobre o seu conservadorismo, há quem diga até fundamentalismo. Mesmo que as palavras no livro de entrevistas agora publicado tenham de ser lidas com cautela, a verdade é que o Vaticano acaba de dar um sinal de diálogo com a modernidade. E vindo de quem vem, o que foi dito aconteceu porque não havia outro caminho possível. Afinal, para os falcões é fácil ser pragmático, ninguém nunca se atreverá a chamá-los de fracos. É que quando a maioria dos mil milhões de católicos está do lado da modernidade parece pouco sábio ignorar o que esta diz . Não se ofenda a inteligência do homem que desde 2005 se senta no trono de São Pedro.

Nascido na caótica República de Weimar, adolescente durante a era nazi, soldado ainda antes de fazer 18 anos e depois prisioneiro de guerra, ninguém pode negar a Joseph Ratzinger conhecer a dureza da vida. Filho da mais católica das terras alemãs, a Baviera, todo o seu percurso tem sido marcado por uma rigidez de princípios que o levou primeiro ao estatuto de teólogo de prestígio e depois, por vontade de João Paulo II, a prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé. A sua ortodoxia manifestou-se em pleno no conflito com o também alemão Hans Kung, um teólogo crítico do tradicionalismo do Vaticano e em tempos seu amigo. Chamar assim falcão a este Papa, capaz de prometer ainda há dias a reevangelização de Espanha, é a mais pura das verdades.
Não há, porém, vergonha nenhuma em ser-se um falcão. Ronald Reagan, Yitzhak Rabin ou Nelson Mandela incluem-se nessa categoria. O cowboy anticomunista que falava de um império do mal foi o presidente americano que se sentou à mesa com os soviéticos e pôs fim à Guerra Fria sem um tiro. O general judeu temido pelos árabes conseguiu que israelitas e palestinianos desistissem por uns tempos de se matar. E o ex-chefe do braço-armado do ANC, humilhado por três décadas de prisão, mostrou- -se mesmo assim capaz de acabar com o regime racista do apartheid ao mesmo tempo que chamava compatriotas aos brancos. Bento XVI, que chegou a ser retratado como uma espécie de inquisidor-mor, ficaria bem na fotografia com estes ilustres líderes, agentes de mudanças históricas.
Não se resuma, porém, os cinco anos de pontificado de Ratzinger a este momento de reconhecimento do preservativo como eficaz no combate à sida. A sua denúncia da pedofilia no clero é também de assinalar, mesmo que tardia. E adivinha-se que mais virá aí. As pombas têm um papel de destaque no catolicismo, a começar pela que representa o Espírito Santo, mas a hora pertence a um falcão. Às vezes são eles a fazer milagres.
Leonídio Paulo Ferreira, Diário de Notícias, 22-11-2010

Falcão

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