segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Nem Assange nem os outros


Nunca gostei de radicais. Têm sempre o mau hábito de impor as suas ideias aos outros. Mas com isto não apago a denúncia de um mundo cada vez mais podre

Julian Assange
De um momento para o outro descobrimos que existe um big brother mais poderoso do que todos os outros que se sabe existirem. Um big brother capaz de fazer manchetes sucessivas em inúmeros países do mundo. Capaz de dividir, ou deixar sem resposta, pensadores e políticos de todo o planeta.
O Wikileaks mantém o mundo em suspenso dia após dia, sempre na expectativa da próxima bronca que divulgará: sobre os comportamentos embaraçosos da diplomacia americana ou sobre as movimentações de políticos e empresas de países tão periféricos e insignificantes no xadrez político quanto Portugal. O Wikileaks denuncia o que deve ser denunciado: as violações de direitos humanos e políticos, os atentados contra a vida, as práticas de empresas e governos que andam no limite da legalidade e da ética, ou mesmo muito para lá destas fronteiras. Mas faz também muito mais que isso.
Sejamos claros: toda a gente gosta de dar uma espreitadela pelo buraco da fechadura, ou escutar uma conversa picante que não era suposto estar a ouvir. Toda a gente delira com este género de coisas, até ao dia em que elas acontecem connosco. Porque é este o ponto: o que está o Wikileaks a fazer? É um bastião da transparência ou é ele próprio mais um agente de uso abusivo de poder, um agente que ultrapassou aquela tal fronteira, nem sempre clara, entre o interesse público e o simples voyeurismo, entre uma denúncia de indiscutível interesse público e um comportamento absolutamente irresponsável.

Há quem peça para Julian Assange a pena de morte, considerando-o um traidor e um lunático que não conhece limites. E há quem o defenda intransigentemente, não tanto por aquilo que faz, mas em nome de princípios que considera sagrados, como o do direito à informação e à liberdade de expressão.
Tenho, sempre tive, muita dificuldade em alinhar com discursos absolutistas. E tenho, por isso, grande dificuldade em olhar com simpatia para um indivíduo que defende uma tese política assente na ideia de "transparência radical". Nunca gostei de radicais. Têm sempre o mau hábito de impor as suas ideias aos outros. Mesmo nos casos em que possam ter razão, não deixa de ser um mau hábito.
É também por isso que vejo com preocupação o mundo dividir-se entre aqueles que apoiam Assange, genericamente todos aqueles que são intrinsecamente bons, porque combatem aqueles que são intrinsecamente maus - os que têm o poder -, e os que estão contra Assange, genericamente todos aqueles que são responsáveis, porque têm noção do caos em que o mundo se arrisca a entrar caso se deixe a nu todo o cinismo que rege as relações políticas e económicas internacionais, além de outras questões "menores" que têm a ver com a segurança de indivíduos, comunidades ou países.
Mas, pior ainda do que isso, é a armadilha para onde se procura empurrar a discussão em torno deste caso, colocando-o como um confronto entre a liberdade de informação e a censura. E já muita gente diz que "nós", jornalistas, andamos a dormir, porque hoje o poder persegue Julian Assange e amanhã estará a perseguir todos os jornalistas que divulgarem informação incómoda.
Aí está outra coisa que não me agrada de todo em todo. Não gosto da censura, mas também não gosto do conceito impositivo de "transparência radical", assente no pressuposto pouco exigente de que "tudo o que vem à rede é peixe". Ora, a verdade é que nem tudo o que vem à rede é peixe, nem isso é fazer jornalismo. E isto sabem os jornalistas muito bem - ou têm pelo menos a obrigação de o saber.
Questão diferente é a suposta alta segurança dos serviços de informação dos EUA ser, afinal, pior que um queijo suíço, o que é um problema exclusivamente dos norte-americanos - e de todos os que lhes dão informação relevante. Ou o facto de, felizmente, de tempos a tempos, aparecer alguém - alguém que, tipicamente, foge ao padrão comum - que consegue levantar o pano e meter-nos pelos olhos dentro realidades com as quais não devemos nunca pactuar. Como é também coisa diferente concentrar o fogo no "bandido" Assange, esquecendo todas as sujeiras politicamente relevantes que a Wikileaks nos tem mostrado.
Assange está muito longe de ser um anjo e o seu conceito de ação está longe de ser pacífico, mesmo para quem se identifica de muito perto com aquele tipo de atuação. A prova disto mesmo está na desagregação do grupo que fundou o Wikileaks.
Mas há uma realidade que alimenta os Assanges desta vida e que está lá, no fundo da questão, muito para além dos excessos cometidos pelo Wikileaks. E muito mais grave do que eles. Lá bem no fundo está um mundo crescentemente corrupto, um mundo que confunde interesses de Estado e interesses particulares, um mundo que não se importa de negociar com bandidos de toda a espécie a troco de cinco tostões.
Como disse, nunca gostei de radicais, mas com isso não apago a denúncia de um mundo cada vez mais podre.
Pedro Camacho, “Visão”, nº 928, de 16 a 22-12-2010

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