terça-feira, 25 de janeiro de 2011

O divórcio belga

Há décadas que a separação vem ganhando forma, só que, como nos velhos casais, ninguém quer assinar os papéis do divórcio

A Bélgica está à procura de um governo desde junho de 2010. A crise política atual é de desfecho imprevisível. Como se o país estivesse numa situação crítica de cuidados intensivos, com todos os órgãos vitais a funcionar bem, mas com o cérebro fortemente atingido. Ou seja, com uma classe política que não consegue chegar a um acordo de governação nem tem a coragem necessária para mandar desligar os tubos, que ainda dão à Bélgica uma parecença de país. O que é curioso, numa sociedade que aceita a eutanásia como prática corrente.
Também é interessante ver como, apesar de tudo, as instituições e a economia continuam a funcionar. A administração pública está bastante descentralizada. Muitas das responsabilidades foram, com o tempo, transferidas para os poderes regionais e locais, o que as torna menos vulneráveis às crises de governo. Por outro lado, o que ficou, a nível central, está altamente profissionalizado, ou seja, pouco sujeito às intempéries políticas e ao clientelismo dos partidos. Os sistemas jurídicos de referência mantêm-se constantes, não mudam por dá cá aquela palha, como acontece em Portugal, o que permite seguir regras claras e evitar as incertezas. Os investidores não se dão bem com incertezas. A economia continua, por outro lado, a beneficiar da localização muito central do país, das ligações aos mercados externos e de uma mão-de-obra qualificada e conscienciosa.

As eleições de junho passado mostraram que as comunidades linguísticas vivem de costas viradas. Cada uma pensa apenas nos seus interesses próprios e justifica o alheamento da outra metade da nação com uma série de preconceitos. É um pouco como se a Bélgica fosse o Sudão da Europa, com a linha de fratura entre o Norte, saxónico, e o Sul, latino, a passar na região de Bruxelas. O problema é que não se trata de um fenómeno recente, mas sim do resultado de um longo processo. Há décadas que a separação vem ganhando forma, só que, como nos velhos casais, ninguém quer assinar os papéis do divórcio. As comunidades podem dar a impressão de que vivem lado a lado, numa casa comum. Quem conhece bem a situação sabe que cada um, flamengo ou francófono, vive numa parte separada da casa.
Nenhum dos políticos atuais com influência, Bart de Wever, na Flandres, Elio Di Rupo, na Valónia, possui prestígio nacional suficiente para garantir uma saída da crise. O Rei tem mostrado uma capacidade de invenção sem precedentes, quando se trata dos títulos a dar a quem é solicitado para proceder a consultas exploratórias, mediações, facilitações e outros equilibrismos, enfim, a uma série de acrobacias políticas, que têm acabado todas em saltos mortais. Alberto II não tem poder para mais.
A solução parece estar, ironia das realidades de hoje, nos mercados. Está a tornar-se claro que o enredo, se se prolongar, terá um impacto importante na economia das famílias e nas contas do Estado belga. Há dias, um conjunto de economistas influentes, todos da Flandres, o que é particularmente relevante, já que muitos estão convencidos de que são os flamengos quem quer acabar com o país, veio a público, para dizer que o impasse pode levar a uma crise económica nacional e contribuir para o enfraquecimento do euro.
O cidadão comum é capaz de viver sem governo. Porém, quando o seu porta-moedas passa a estar em risco, num país profundamente burguês, o acordo político torna-se inevitável. A história tem chamado a este tipo de equilíbrios bem ténues, mas funcionais, um compromisso à la belge.
Victor Ângelo, revista Visão, 13-01-2011


Bandeira da Bélgica

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