sábado, 16 de julho de 2011

O preço da discórdia

A crise da Europa, que só metaforicamente é grega, é uma crise de memória. Memória vivida, que não tem a sra. Merkel, o sr. Sarkozy, o sr. Barroso
Mapa político da Europa
Li, há uns anos valentes, um livro que mudou radicalmente a forma como via mas sobretudo como "sentia" a Segunda Grande Guerra. É bem verdade que não foi o primeiro nem o último. O tema sempre me suscitou curiosidade e os livros históricos, biográficos, romanceados, há muito que se acotovelam na desordem aparente que é a minha biblioteca. Também é verdade que nunca é inteiramente possível "experimentar" a Segunda Guerra Mundial como objeto de simples reflexo intelectual. Ainda hoje guardo na memória o olhar angustiado de um rapazinho que um dia teve a minha idade e que sobreviveu no genérico, cem vezes repetido, do fabuloso documentário com que a BBC assombrava as minhas tardes de meninice, ao domingo. Mas foi com Se isto é um homem, de Primo Levi que o conflito de 39-45 tomou para mim uma dimensão verdadeiramente humana. A escala não é a das grandes batalhas, a tragédia não é a das grandes opções políticas e geoestratégicas. Os personagens não são os heróis míticos nem os génios amorais que escreveram as linhas maiores da História. A miséria, muito pelo contrário, tem tamanho de homem, a angústia cabe no peito de um rapazinho, a batalha mais impressiva é a que opõe um pai e um filho e o seu objetivo é a conquista de um simples pedaço de pão. Algures, num comboio sobrelotado a caminho de um campo de extermínio.
Tudo isto, embora nada pareça, vem a propósito da crise grega. Que, é bom não esquecê-lo, não é essencialmente grega e muito menos é sobre dívida soberana, agências de notação financeira ou mais uma dúzia de conceitos relativamente abstratos. A crise dita grega é a crise de um dos projetos de paz mais fabulosos da História da humanidade. Filho dos horrores dilacerantes e muito concretos da Segunda Grande Guerra e de um par de estadistas que os vivenciaram.
E assim regressamos a Primo Levi. Tenho para mim, é uma tese que vale o que vale, que a crise da Europa é a crise do desaparecimento dos últimos líderes que viveram, experimentaram, sofreram, diretamente, o horror da Segunda Grande Guerra. É a crise do desaparecimento de uma geração de líderes, mas também de cidadãos em geral, que conheceu o terrível preço de uma alternativa ao projeto de unificação europeia. Para quem os custos que agora paralisam e parecem condenar a Europa mais não seriam do que risíveis minudências quando comparados com a tragédia da simples ameaça, por mais ténue que possa julgar-se, de um conflito continental. A crise da Europa, que só metaforicamente é grega, é, pois, uma crise de memória. Memória viva, memória vivida, que não têm a sra. Merkel, o sr. Sarkozy, o sr. Barroso, mas que também não têm os milhares de gregos, espanhóis e portugueses que protestam na ruas, como não a têm os milhões de eleitores e contribuintes alemães ou finlandeses.
Tenho uma certa tendência para o pessimismo. Deem-me pois o devido desconto. Mas, feito o aviso, estou absolutamente convencido de que o que andamos a discutir na Europa é a viabilidade de legar aos nossos filhos os anos de paz que herdámos dos nossos pais. Postas as coisas assim, concordarão que o preço a pagar - apareça ele sob a forma de sacrifícios financeiros ou de cedências de soberania - será sempre pequeno demais.
Título e Texto: Pedro Norton, revista Visão, nº 956, 06-07-2011

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