domingo, 17 de julho de 2011

Reação em cadeia pós-nacional

Robert Kurz
No capitalismo não são as pessoas que são socializadas, mas sim as coisas mortas: o dinheiro e as mercadorias. Daí que a percepção do mundo se restringe a um ponto; ao indivíduo singular, à empresa individual, ao Estado individual. Igualmente atomizada é a consciência do tempo. O que conta é apenas a actualidade. Tudo o resto são águas passadas ou o dilúvio depois de nós. Não se pensa na época, mas no horizonte de tempo do "Telejornal". É verdade que se sabe de algum modo que há um contexto global complexo, especialmente económico. Mas, quanto mais se fala de "redes”, mais isolados os factos surgem. Globalização, tudo bem, mas isso não é um tema de ontem?
Desde que os Estados tiveram de atar os seus pacotes de resgate, em toda a parte se gosta de usar novamente lentes nacionais. Que a falência do Lehman Brothers (o que foi isso?) tenha provocado uma reacção em cadeia, que revelou por um momento a rede mundial de créditos malparados, isso é considerado um excesso de quaisquer mercados financeiros sem pátria. Gosta-se de pensar num mundo de economias altamente patrióticas sob o guarda-chuva protector do governo e dentro das quatro paredes caseiras. Na realidade, os mesmos fluxos transnacionais de mercadorias e dinheiro, os mesmos desequilíbrios globais e circuitos de deficit continuam a ser subsidiados tal como antes, só que agora pelo crédito público, em vez de pelas bolhas financeiras comerciais. E mesmo os fundos públicos também são tudo menos nacionais.

O capitalismo é considerado como indestrutível e a globalização qualitativamente nova é de preferência recalcada, pelo que a questão que se coloca parece ser apenas quem sobe ou desce entre as grandes empresas, ou quem são os vencedores e os perdedores nacionais. A China vai substituir os EUA como potência mundial económica e política? Esta "grande narrativa" dos média é completamente cega à realidade, porque já não vivemos num século de impérios nacionais independentes. Os excedentes de exportação da China para com os Estados Unidos, novamente a aumentar de mês para mês, são financiados pela inundação de dinheiro da Reserva Federal americana. Inversamente, os chineses alimentam o crescimento interno promovido pelo Estado a partir das suas astronómicas reservas cambiais principalmente em dólares. A interdependência é tão grande que o tropeço de um faz o outro ir também ao chão. Nem individualmente nem em conjunto eles conseguem controlar a sua relação inconsistente.
Na Europa procede-se como se as crises de dívida da Grécia e dos outros candidatos a vacilar fossem problemas domésticos que pudessem ser dominados pelo esforço de poupança nacional. De facto, os deficits na UE são o reverso dos excedentes de exportação da Alemanha. Se a economia alemã tivesse de se concentrar no mercado interno entraria imediatamente em colapso. Até agora as medidas de austeridade draconianas no sul e no leste da Europa, como de resto também na Grã-Bretanha, em grande parte não passaram de palavras. Se forem plenamente realizadas é de esperar uma recessão europeia com implicações globais. E se a Grécia falir, precisamente por poupar até estourar, as pessoas vão-se admirar como os títulos da dívida pública grega estão armazenados por todo o lado. O caso não é muito diferente dos certificados do Lehman Brothers e o mesmo se diga dos créditos públicos mal parados por todo o lado. O capital é internacional em todas as suas formas. Se os protestos contra os programas anti-sociais de gestão da crise se limitarem a invocar tacanhamente a independência nacional eles só podem rodar em falso.
Título e Texto: Robert Kurz, original POSTNATIONALE KETTENREAKTION. Publicado em “Neues Deutschland”, 27-06-2011

Robert Kurz: Nascido em 1943, estudou Filosofia, História e Pedagogia. Vive em Nurenberg como publicista autónomo, autor e jornalista. É co-fundador e redator da revista teórica EXIT! - Kritik und Krise der Warengesellschaft (EXIT! - Critica e Crise da Sociedade da Mercadoria). A área dos seus trabalhos abrange a teoria da crise e da modernização, a análise crítica do sistema mundial capitalista, a crítica do iluminismo e a relação entre cultura e economia. Publica regularmente ensaios em jornais e revistas na Alemanha, Áustria, Suiça e Brasil. O seu livro O Calapso da Modernização (1991), também editado no Brasil, tal como O Retorno de Potemkine (1994), Os Últimos Combates (1998) e Blutige Vernunft (Razão Sangrenta) em 2004, provocou grande discussão e não apenas na Alemanha. Publicou também, entre outros, Schwarzbuch Kapitalismus (O Livro Negro do Capitalismo) em 1999, Marx Lesen (Ler Marx) em 2000, Weltordnungskrieg (A Guerra de Ordenamento Mundial) em 2002, Die Antideutsche Ideologie (A Ideologia Anti-alemã) em 2003 e Das Weltkapital (O Capital Mundial) em 2005, ainda não editados em português.

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