quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Há muito efeito carneirada por aí. Alguém diz “mata” o outro complementa “esfola”


Edson Athayde

Prefiro ser/Essa metamorfose ambulante
 Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
 Quero dizer/Agora o oposto do que eu disse antes
 Eu prefiro ser/Essa metamorfose ambulante
 Do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo
 Sobre o que é o amor/Sobre eu, que nem sei quem sou
 Se hoje eu sou estrela amanhã já se apagou
 Se hoje eu lhe odeio amanhã lhe tenho amor
 Lhe tenho amor, lhe tenho horror
 Lhe faço amor, eu sou um actor”
Raul Seixas

O que era para ser uma happy hour no Bairro Alto acabou por revelar-se numa metafísica epifania. Na parede do bar, em meio a uma colagem de fotos e recortes, uma frase escrita num papel saltou para o meu colo: “Penso mas não existo”.
Não me interessa o que queria dizer quem a escreveu (se é que queria afirmar alguma coisa relevante). O que eu apontei mentalmente é que valia a pena falar sobre uma realidade inconveniente: tornou-se moda o separar entre o acto de “pensar” e estado físico de “existir”.
“Cogito, ergo sum”. “Penso, logo existo”. Já foi mais fácil, já foi mais fácil. René Descartes deve estar a revirar-se no túmulo.
Outrora (quando “outrora” ainda era uma palavra que se usava) as pessoas pensavam um pouco mais antes de falar ou escrever. O que elas diziam, seja numa tertúlia com os amigos, numa carta ou num artigo de jornal, deveria representar o que elas eram em palavras. Hoje não é bem assim. Há muito efeito carneirada por aí. Alguém diz “mata” o outro complementa “esfola” (sem, ao menos, perguntar quem é que deve ser morto ou o motivo do linchamento).


Odiar por odiar é do mais simples que há em tempos em que ninguém tem paciência para ouvir argumentos. Pontos de vista viraram bandeiras. Um, para julgar-se certo, precisa acreditar (num acto fé, posto que não necessita de provas) que os outros estão errados.

É uma sociedade a preto e branco. Uma sociedade autista. Do pensamento único ou de grupo, do raciocínio das massas. Nós contra eles. Eles, claro, contra nós. E todos contra todos.
Quando foi, em que esquina da vida, que perdemos o hábito de duvidar das nossas próprias certezas? De procurar alternativas para os nossos conceitos? De evitarmos ser como os espelhos (que reflectem sem pensar)?
Na política, já não há divergências, há teatro. Os actores políticos movem-se no palco com deixas ensaiadas, são personagens coerentes no pior dos sentidos, previsíveis, mais preocupados em passar a imagem que estão a fazer a coisa certa do que em fazer a coisa certa para aquele determinado momento. E o autor daquelas falas (no parlamento, nas conferências de imprensa, nos comícios), pelamordedeus, se perder o emprego não servirá nem para escrever bulas de remédio.
Nas amizades, o sistema é de tolerância zero: “tens que ser aquilo que eu quero; tens que fazer aquilo que eu mando; tens que gostar daquilo que eu gosto; tens que ouvir as músicas que eu curto; tens que concordar com aquilo que eu digo, porque eu já sou, faço, gosto, ouço, curto aquilo que alguém, sei lá quem, definiu como o certo. Se não aceitas, no problem, basta trocares de grupo, ninguém dará pela tua falta”.
Proponho, então, amigo, um minuto de dúvida por dia como uma dieta sadia. 60 segundos diários de questionamentos (sérios ou divertidos, tanto faz, que o riso honesto também pode fazer parte da cura) sobre os outros e sobre si mesmo. Ao fim de menos de dois meses, terá quase uma hora de raciocínio original. Não parece muito, mas é mais do que estamos a nos habituar. É isso o que eu penso.
Ou não, só para ser (in)coerente.
Título e Texto: Edson Athayde, revista Sábado, 23-11-2011

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