Poucas vezes na História
viu-se de forma tão direta e fotográfica o legado de um governante. É o buraco
negro registrado pelos satélites que passam sobre o apagão da Coreia do Norte
deixada por Kim Jong-il, o "Sol do Futuro Comunista", o
"Comandante Invencível". Um apagão elétrico, social, político e
econômico.
É com esse apagão que a
jornalista americana Barbara Demick começa seu livro "Nothing to Envy"
("Nada a invejar — Vidas comuns na Coreia do Norte"). Ela foi
correspondente do "Los Angeles Times" em Seul e, durante sete anos,
entrevistou coreanos que fugiram da tirania de Kim Jong-il, que se foi embora
no domingo.
Quando o "Querido
Líder" nasceu, uma estrela brilhou no céu e dois arco-íris enfeitaram o
dia. Sucedeu ao pai, o "Grande Marechal", e passou o poder ao filho.
Como sucedeu em 1994, quando o
coração matou Kim Il-sung, o "Divino Guardião do Planeta", torce-se
pela desagregação do regime que aprisiona 23 milhões de pessoas, dando-lhes
fome, miséria e brutalidade.
Barbara Demick escreveu sobre
uma tirania depois de um século varrido pelo Holocausto e pelo Gulag, quando
seria possível pensar que já se viu de tudo. O que há de terrível no retrato da
Coreia do Norte é que ele surpreende o leitor. Quando se acha que a vida de um
povo não pode piorar, ela piora, envergonhando a época em que se vive.
Em 1945, a península coreana
foi dividida entre duas ditaduras. A do Norte, comunista e rica. A do Sul,
capitalista e pobre. Nos anos 60, quando se falava em "Milagre Coreano",
o tema era a supremacia socialista.
Em 1970, todos os vilarejos do
país tinham eletricidade. Passou-se uma geração, o Sul tem uma democracia e o
Norte tem uma tirania enlouquecida, que mais se parece com a Spectre do romance
de Ian Fleming do que com um Estado. Em apenas quatro anos, entre 1991 e 1995,
a renda per capita da população caiu de US$ 2.460 para US$ 719. O regime vive
do socorro cúmplice da China.
Falta eletricidade, mas as 34
mil estátuas do "Pai da Pátria Socialista" são iluminadas mesmo de
dia. A professora Mi-Ran conta que via alunos de cinco ou seis anos morrerem de
fome nas salas de aula. Sua turma de jardim-de-infância de 50 alunos caiu para
15.
Nas casas desse paraíso, uma
parede da sala deve ser reservada para o retrato do Líder, que é distribuído
com um pano. Fiscais zelam para que nenhuma família deixe de limpá-lo.
A fome dos anos 90 matou entre
600 mil e 2 milhões de coreanos do Norte. Em algumas cidades morreram dois em
cada dez habitantes. Um médico conta que ensinou mães a ferver demoradamente a
sopa de capim. A certa altura, as famílias preferiam que as crianças morressem
de fome em casa, porque nos hospitais, onde não havia remédio, faltava também
comida.
Nessa época o governo informou
que racionara alimentos porque o povo da Coreia do Sul estava passando fome e
precisava ser ajudado.
Ninguém comemora aniversário
na Coreia do Norte. Festeja-se apenas um dia: o do nascimento do Líder.
Kim Jong-il, com seus
sapatos-plataforma, já foi tarde. Se Deus é comunista, o filho do Líder entrega
o campo de concentração a um condomínio da China com a Coreia do Sul.
Serviço: "Nothing to Envy" está na rede por
US$ 9,99.
Título e Texto: Elio Gaspari,
O Globo, 21-12-2011
Colaboração: Álvaro Pedreira
de Cerqueira
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