O monstro está a usar e a
abusar da lei do compromisso para testar o governo. Ainda é cedo para saber
quem ganha
António Ribeiro Ferreira
Os laboratórios Roche suspenderam o fornecimento de medicamentos a 23 hospitais públicos por uma
razão elementar. Dívidas de 145 milhões de euros por pagar há mais de 420 dias,
isto é, há mais de um ano.
É evidente que qualquer
fornecedor tem vontade de fazer o mesmo perante calotes desta natureza.
Acontece que uns podem, por terem músculo financeiro e clientes diversificados,
outros não, porque dependem essencialmente das compras do Estado e têm muito medo
de divulgar publicamente os calotes da administração central, das regiões
autónomas, das câmaras e das empresas públicas. Basta ver o que aconteceu há um
ano quando o governo de Sócrates, num gesto de falsa boa vontade, abriu um site
para os fornecedores divulgarem publicamente os serviços que lhes deviam
dinheiro, os montantes e o tempo dos calotes. Claro que ficou deserto.
Ninguém se arriscou a cair nas
más graças de directores-gerais, gestores, autarcas e governos regionais. As
dívidas brutais do Estado a empresas que vivem quase exclusivamente das
encomendas públicas provocam dramas incontáveis, falências, desemprego e rombos
incalculáveis na economia e no financiamento da actividade produtiva. Por isso
mesmo a troika esteve atenta ao problema logo em Maio de 2011, quando Portugal
pediu ajuda externa e aceitou o Memorando em troca de um empréstimo de 78 mil
milhões de euros.
Por isso mesmo foi
recentemente promulgada a lei do compromisso financeiro, que faz responder
disciplinar e criminalmente todos os responsáveis públicos que assumam
compromissos financeiros sem a garantia de os liquidar em 90 dias. O diploma
foi promulgado por Cavaco Silva, está em vigor, e provocou de imediato reacções
violentas e indignadas de vários sectores integrantes do monstro.
Como seria de esperar num país
que geme de dor sempre que sai alguma medida que implique uma maior disciplina
financeira do Estado, os administradores hospitalares vieram logo para a
opinião pública ameaçar o governo com uma demissão em massa e, no tom alarmista
habitual, traçar cenários dantescos sobre o que aconteceria a qualquer
desgraçado que tivesse a má sorte de entrar num hospital público.
Desconhece-se se a demissão já
se verificou e ainda é cedo para perceber se a lei está ou não a ser cumprida.
Mais recentemente foram as câmaras a clamar que muitas iam para a falência e
que estariam a negociar com o Ministério das Finanças um regime excepcional
qualquer, para além de planos de resgate financeiro semelhantes ao da Madeira.
Estes exemplos revelam bem como um diploma muito pouco mediático, sem debates
inflamados na comunicação social, atinge em cheio um monstro habituado a fazer
pouco de toda a gente, com total impunidade.
Mata a economia, mata
empresas, mata empregos, mas exige sempre às suas vítimas, de forma implacável,
o pagamento dos impostos referentes a serviços que não paga a tempo e horas. Um
crime que evidentemente ninguém castiga. Até agora. Mas nestas coisas do Estado
é bom esperar para ver quem ganha. A lei ou o monstro.
O governo, o ministro das
Finanças ou a máquina implacável e insaciável que destrói há anos a economia e
o emprego.
Título e Texto: António
Ribeiro Ferreira, jornal “i”, 28-02-2012
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