sexta-feira, 30 de março de 2012

Bússola do desgosto pela leitura



Carlos Lúcio Gontijo
Faz muito tempo que escrevemos artigos a respeito da falta de políticas públicas mais efetivas e inovadoras na tentativa de formação de gosto pela leitura. Entretanto, como integrantes do núcleo de autores independentes, não alimentamos mais qualquer sonho de assistirmos alguma sensível democratização no âmbito do mercado do livro e seu jogo de troca de influências (e favores) entre editoras, grandes autores e poder público.
Por várias e seguidas vezes defendemos a regionalização de indicação de livros de literatura às escolas, principalmente para as primeiras leituras, nos ensinos fundamental e médio, que cobram proximidade de costumes, hábitos, horizonte geográfico e linguagem. Isto sem considerarmos a importância de que, ao privilegiar autores regionais, haveria a possibilidade de mais contato entre os escritores, os poetas e os alunos, desfazendo a distância causadora de falso “endeusamento”, que coloca a arte de escrever em pedestal inalcançável, quando a verdade a ser cultivada é que todo autor necessita ter o leitor caminhando ao seu lado, frequentando similares ondas de sensibilidade, informação e criatividade.
Nada nos aborrece mais que a eternização de antigas listas de livros obrigatórios, apesar de todos terem consciência de que o bom livro, os chamados clássicos, se impõe por si mesmo. Ou seja, se você cuidar de formar leitores, os próprios amantes da leitura chegarão a eles, com a vantagem de ostentar mais discernimento para melhor apreciá-los.
O mundo da literatura não vai bem, pois há muita gente com toda atrativa circunstância e organizado aparato legal para se aproveitar do idealismo de poetas e escritores desavisados, que não medem esforços para ver suas obras editadas. A todo instante recebemos propostas, via e-mail, para participar de coletânea. Agora mesmo, visualizamos em nosso computador o convite para participar de coletânea de título pomposo: Antologia Os 100 Melhores Poemas do Brasil. A proposta indecente traz uma escala de preços que varia de R$ 200,00 por duas páginas, a R$ 875,00 por 10 páginas. Um explícito assalto virtual, conforme detectamos após análise, levados pela orientação da experiência de quem custeou a impressão de 14 livros, inclusive do romance Quando a vez é do mar”, que lançaremos no dia 27 de abril deste ano de 2012.
A divulgação de dados relativos ao índice de leitura dos brasileiros não nos surpreendeu, pois o que nos espantou foi o Instituto Pró-Livro dar-se ao trabalho de realizar tal levantamento, apesar da inexistência de materialização de projeto nesse sentido no transcorrer dos anos. Ou seja, o universo pesquisado era alicerçado no mesmo caos pré-existente.
Dessa forma deu no que havia de se dar: a parcela de leitores caiu de 55% para 50% da população entre os anos de 2007 e 2011. A queda é tão draconiana que até entre crianças e adolescentes, que costumam ler por dever escolar, houve redução, numa comprovação inconteste de que à frente da leitura estão tevê, DVD, CD etc., com a cultura da imagem e do som atropelando os livros e a compreensão de textos, que ficam a ver navios – fadados a afundar pela ignorância de seus condutores guiados pela bússola do “desgosto” pela leitura.
Lamentavelmente, mergulhados em ambiente cultural tão desfavorável, quis o Criador nos levar o luzidio intelectual Millôr Fernandes, que se sentindo isolado escreveu: “Infelicidade nascer com talento melódico numa época em que o pessoal só se interessa por percussão”. E estava, como sempre, certo o inteligentíssimo Millôr, que dentre mil facetas era excelente e não reconhecido poeta. A realidade insofismável é que se não é a família anunciar sua morte a mídia ignara e voltada para o supérfluo e a propagação do grotesco não perceberia sua retirada física do cenário cultural brasileiro.
Trocando em miúdos e para dar por terminado nosso artigo, transcrevemos um pensamento, uma frase, em que Millôr Fernandes destila sua ironia, seu humor e sua perfeita apreensão da sociedade brasileira: “Não, o Brasil não é o único país corrupto do mundo. Mas a nossa corrupção é a mais gratificante”.
Título e Texto: Carlos Lúcio Gontijo, poeta, escritor e jornalista

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