Sergio Amaral
O convívio entre os povos,
desde os tempos antigos, orienta-se por um princípio e por uma realidade. O
princípio é o de que pacta sunt servanda. Se os acordos não forem respeitados,
eles não existem e, por conseguinte, não existem regras para a convivência
entre as nações. A realidade é o de que a política internacional, antes de
tudo, é uma relação de poder, qualquer que seja a sua forma. Mao dizia que o
poder está na ponta do fuzil. Gramsci acrescentava que o poder resulta de uma
combinação entre força e consentimento. Os Estados Unidos derrotaram a União
Soviética na guerra fria por sua superioridade econômica. Nye teoriza sobre o
poder suave. Moïsi introduz o instigante conceito da geopolítica das emoções.
Pois bem, a América do Sul
parece estar buscando reescrever essas duas noções fundamentais. Em nossa
região, os tratados não precisam mais necessariamente ser cumpridos. Serão
cumpridos ou descumpridos em função das afinidades ideológicas ou da relação de
amizade entre os países. É a versão contemporânea das práticas correntes, entre
nós, na Velha República: aos amigos, tudo; aos adversários, a lei. O Conselho
do Mercosul recusou o impeachment de Fernando Lugo sob o argumento de que,
embora a letra da Constituição do Paraguai possa ter sido respeitada, o rito
sumário teria caracterizado o golpe. Pode ser. Mas se recusarmos as decisões do
Legislativo e do Judiciário paraguaios, por configurarem um simulacro de
impeachment, tampouco poderemos aceitar o simulacro de democracia que vige na
Venezuela e muito menos recompensá-la com o ingresso no Mercosul.
Em nosso subcontinente, a
vontade dos menores, curiosamente, parece prevalecer sobre a dos maiores. Um
estudante de intercâmbio em Relações Internacionais, recém-chegado de Marte, ao
ler as notícias sobre a perseguição a empresários brasileiros, pelo governo
boliviano, em represália à decisão do Brasil de conceder asilo a um senador da
oposição, poderia bem supor que a Bolívia é o país sul-americano com 8,5
milhões de quilômetros quadrados, uma população de 205 milhões de habitantes e
um produto interno bruto (PIB) de US$ 2,4 trilhões; e o Brasil, a nação mais
frágil, com território de 1 milhão de quilômetros quadrados, 10 milhões de
habitantes e um PIB de US$ 25 bilhões. Às vezes pode até parecer que é
efetivamente assim, mas a realidade é o inverso.
Infelizmente, esse episódio
recente não é um fato isolado. A Bolívia já ocupou antes uma planta da
Petrobrás. O Equador contestou a legalidade de um empréstimo do BNDES porque se
indispôs com a companhia construtora brasileira. Enquanto isso, o secretário de
Comércio da Argentina, com uma simples chamada telefônica, costuma violar o
espírito e a letra do Tratado de Assunção, o ato constitutivo do Mercosul.
A menção a esses fatos de modo
algum sugere que o Brasil deva prevalecer-se de sua superioridade econômica ou
do tamanho de seu mercado para impor a sua vontade. Ao contrário. Por uma
questão de solidariedade para com os nossos vizinhos e irmãos sul-americanos, e
mesmo por interesses econômicos e políticos próprios, o Brasil deve buscar uma
prosperidade compartilhada na região. Por que não traduzir as palavras em fatos
e promover uma abertura generalizada e unilateral do nosso mercado aos
parceiros sul-americanos? Quem tem condições para propor, acertadamente, uma
liberalização multilateral do comércio no âmbito da Organização Mundial do
Comércio (OMC), com mais razão pode comprometer-se com uma abertura mais ampla
no âmbito regional.
Por que não impulsionar, como
faz a China, uma integração do espaço econômico regional por meio do mercado?
Na medida em que um acordo de integração é inviável na Ásia, em face dos vários
conflitos entre países da região, as grandes empresas chinesas, com o velado
apoio de seu governo, desenvolveram mecanismos de complementação industrial e
de integração das cadeias produtivas com as economias vizinhas. Hoje o comércio
intra-asiático já representa 53% das trocas totais dos países do continente. No
Mercosul esse porcentual, que já foi de 21%, de 1992 a 1999, caiu para 14% de
2000 a 2008. O Mercosul já representou 17% das exportações brasileiras, hoje
não passa de 11%.
Estamos assistindo a um
visível retrocesso comercial e institucional do Mercosul, entre outras razões,
pela tolerância com a violação sistemática das suas regras e o desrespeito às
suas instituições. A benevolência diante do descumprimento gera o descrédito
perante a sociedade, a insegurança jurídica para os agentes econômicos e a
deterioração da imagem do Mercosul entre os seus parceiros no restante do
mundo.
O Brasil tem o dever de fazer
concessões aos seus vizinhos de menor peso relativo nas negociações
econômico-comerciais. Mas, em contrapartida, tem o direito de cobrar o
cumprimento do que foi acordado. Temos meios para tanto. Não se trata de
ameaçar ou fazer represálias. Basta cumprir a lei. A Bolívia dificilmente
resistiria ao fechamento da fronteira contra a receptação de carros roubados ou
o tráfico de drogas. O Paraguai, que se soma muitas vezes ao coro das ameaças
contra os agricultores brasileiros, dificilmente suportaria a suspensão do
contrabando na fronteira.
O episódio recente na Bolívia
é lamentável. E não somente pela mesquinhez das ameaças contra produtores, que
nada têm que ver com as políticas de seus governos. Mas também por questionar a
legitimidade do asilo diplomático, uma das mais genuínas tradições da
diplomacia latino-americana, consagrada no caso de Haya de la Torre, um dos
próceres ilustres do nosso continente.
A Bolívia só se sente à vontade
para praticar atos de verdadeira provocação por estar convencida de que, mais
uma vez, contará com a benevolência do Brasil.
Diante desse cenário insólito,
só nos resta indagar, repetindo Cícero: até quando, ó Morales, abusarás de
nossa paciência?
Título e Texto: Sergio Amaral, Diplomata, foi
Embaixador em Londres e em Paris, O Estado de S. Paulo, 21-7-2012
Colaboração: Rafael Picate
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