segunda-feira, 5 de novembro de 2012

A geração mais queixinhas de sempre

Alberto Gonçalves

Um inquérito do Observatório Cetelem acerca das classes médias na Europa apurou que, bastante acima da opinião genérica europeia, quase 40% dos portugueses consideram viver pior do que viviam os seus pais. Ou os portugueses em causa são todos filhos de pais com 45 anos, no máximo (o que é improvável: o inquérito destinava-se a maiores de 18) ou uma percentagem extraordinária de cidadãos desfrutava há duas ou três décadas de um conforto de que ninguém, incluindo os próprios, suspeitava. Ou, afinal, a “geração mais qualificada de sempre”, garantidamente a responsável pelas lamúrias, não sabe o que diz.

Uma coisa é sentir os apertos vigentes. Outra coisa é convencermo-nos de que nunca nenhuma geração sofreu o que os sujeitos que andam pelos 20 ou 30 anos sofrem. Embora seja útil, nem vale a penar recorrer ao Pordata para confrontar o atual consumo das famílias com o de 1960. Ou como o de 1980. Ou, nalgumas matérias, como o de 2000. A memória da penúria, direta ou transmitida, deveria bastar. E se a amnésia for incurável, o facto de milhares de jovens adultos desabafarem as suas desditas no Facebook, meio que pressupõe o pagamento regular da Internet e a posse de um computador (ou de um Tablet, ou de um Smartphone) já aponta umas luzes sobre a intensidade das desditas de que se queixam tantos dos que se queixam.

Estes excessos são compreensíveis quando se acha que o mundo começou ontem, e se ignora que anteontem vigorava uma pobreza tão vasta e tão velha quanto o País. O meu avô materno foi gerente de uma das maiores fábricas alimentares nacionais e jamais comprou carro, telefone, televisão a cores ou máquina de lavar roupa. O meu avô paterno inscreveu-se na tropa com 15 anos e uma mentira para fugir da fome. A mãe deste avô partiu rumo ao Brasil a fim de vender tapetes na rua. Uma trisavó materna pedia esmola à porta da igreja. Uma bisavó materna era operária fabril e analfabeta. Em quatro avós, só uma frequentou o liceu e só os homens concluíram a primária. Chega?

Não chega? Os meus pais cresceram sem um brinquedo. O meu pai, que acabou por concluir uma licenciatura, trabalhou em rapazola como varredor no Porto de Leixões. A minha mãe, que ficou a um triz de concluir a licenciatura e não precisou de trabalhar em adolescente, nasceu numa “ilha” asseada, onde a família dela alimentava por caridade um vizinho que se tornaria ministro da Justiça e da Defesa. Eu nasci num T2 pequenino e, imaginem o tormento, cresci sem telemóvel, televisão (salvo um canal sem salvação), PlayStation, festivais de música, viagens de escola, ligação à Rede e iPod. Apesar disso, tenho a noção dos imensos privilégios de que beneficiei. Às vezes, tenho até uma espécie de vergonha, ou um respeito melancólico por aqueles cuja existência determinou a minha à custa de sacrifícios que mal consigo conceber.


É esse respeito que falta a quem se julga vítima de uma conspiração preparada exclusivamente para si e se esquece que, antes da abundância enganadora dos fundos, as classes médias indígenas lutavam para sobreviver e com frequência perdiam. Não me passa pela cabeça disfarçar a gravidade da situação, aliás particularmente grave entre pessoas de meia-idade, em inúmeros casos amputadas do passado e sem razões de esperança no futuro. Mas não resolve nada a presunção de que as dificuldades começaram agora, justamente para atingir os que agora começam as suas vidas. Os progenitores destes penaram muito mais e queixaram-se muito menos. De resto, tal como desprezar a iminência da crise não a impediu de se instalar, exagerar a sua singularidade não a persuadirá a partir.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, revista Sábado, nº 441, de 11 a 17-10-2012
Digitação e Edição: JP

2 comentários:

  1. Nega então que em 2000 estávamos melhor que agora?

    Pelo que me recordo, os salários das classes baixas eram mais altos e os preços dos artigos de consumo eram muito menores.

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  2. Ainda bem que se recorda do XIV Governo Constitucional, era Primeiro-Ministro, o Socialista António Guterres. Onze anos depois, também eram os socialistas que governavam Portugal quando pediram ajuda externa. Ajuda quer dizer dinheiro.

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