Fernando Luis Egaña
O que o regime imperante na
Venezuela tem se empenhado em fomentar e praticar em termos de antissemitismo e
antijudaísmo no país, ao longo dessas duas décadas iniciais do século XXI, é
uma realidade que além de ostensiva está profusa e devidamente documentada.
Bastará, por exemplo, uma revisão sumária da publicação: “Antissemitismo na
Venezuela - Informe 2011″, preparada pela Confederação de Associações
Israelitas da Venezuela (CAIV), e editada em março de 2012, para se ter conta
suficiente do assunto.
E esta campanha fenomenal de
antijudaísmo instigado e imposto a partir do poder do estado, não tem dada a
ver com a tradição pública nacional nem com o ambiente sociocultural do país,
nem tampouco com nada que não seja a importação de doutrinas discriminatórias
que visam minar os valores longamente sedimentados pelos venezuelanos desde os
primórdios da colonização espanhola e que tem como um dos objetivos
desmoralizar e fomentar o ódio contra o Estado de Israel, em primeiro lugar,
mas também contra as comunidades hebraicas de qualquer parte do mundo e, máxime
na Venezuela, por razões de um radicalismo revolucionário que mimetiza o levado
a cabo por Adolf Hitler e seu Partido dos Trabalhadores da Alemanha nos idos de
1930, ou por critérios de identificação com os interesses de organizações
nacional-socialistas (nazistas e fascistas) de determinados Estados do Oriente
Médio, ou ainda por outras motivações político-proselitistas de fundo populista
e demagógico que, em nenhum caso, repito, provém da maneira de ser e de pensar
dos venezuelanos, mas, aliás, bem ao contrário dela.
Nesse sentido, vale a pena
destacar algumas experiências acerca do quão distante sempre esteve qualquer
sentimento antissemita da sociedade venezuelana antes desse início do século
XXI. E não me refiro à reconhecida amplitude e hospitaleira recepção que sempre
teve a imigração judia, sobretudo durante e depois da Segunda Guerra Mundial,
mas tão somente à plena assimilação dessas e outras correntes migratórias
judaicas ocorridas no século XX, inclusive anteriormente, sem que existissem
quaisquer expressões organizadas de antissemitismo que tivessem provindas de
instâncias de poder político, econômico, midiático ou religioso.
Venezuelanos de religião ou
ascendência judia podiam ser encontrados à frente de despachos ministeriais, em
partidos políticos, em comissões parlamentares, em magistraturas judiciais, em
representações diplomáticas, em corporações de empresários, em colegiados
profissionais, em atividades liberais, em movimentos vicinais, em meios de
comunicação, em universidades e academias, em discussões culturais, em
agremiações artísticas incluindo a celebridade, em associações esportivas, e em
geral nas mais diversas e significativas áreas de desempenho social
venezuelano, sem que o elemento religioso ou a ascendência judia fosse algo
mais do que uma mera característica pessoal, como soem ser as identidades
religiosas ou as procedências em nações de ampla e dinâmica diversidade
cultural.
Pessoalmente, me sinto
satisfeito em constatar que durante quase toda a minha escolaridade, desde o
primário até a universidade, compartilhei meus estudos e minha amizade com
venezuelanos e venezuelanos de religião israelita, sem que na verdade isso me
traga à lembrança qualquer episódio ou circunstância que possam estar
associados direta ou indiretamente a qualquer sentimento ou manifestação
antissemita. De fato, o que, sim, eu me lembro é da consternação e da
indignação que era compartilhada pelos sucedidos fatos históricos do Holocausto
e outras perseguições aos judeus que ocorreram - e ainda ocorrem - desde
sempre, tanto em épocas remotas como recentes, e o absolutamente alheamento que
sentíamos em relação a todo elo de nossa realidade imediata, e de nossa maneira
de entender o mundo, a sociedade e as relações humanas.
Lembro claramente, também, que
ao ocupar uma posição no Conselho de Ministros, compareci a um evento
comemorativo muito especial de uma das entidades da comunidade hebraica da
Venezuela, e poucas vezes, se tanto, tive a oportunidade de observar uma
representação mais qualificada e pluralista da nação, começando por todos os
ex-presidentes da República e continuando por grande parte dos titulares dos
poderes públicos, e de pessoas emblemáticas do mundo político, social,
econômico e cultural do país. Menção a parte merece a diversidade ideológica da
ocorrência: socialdemocratas, socialcristãos, socialistas, liberais, radicais,
moderados e etc. Nunca havia presenciado o resultado de uma capacidade de
convocação parecida. Nunca antes e nunca depois desse evento.
Pouco a pouco, sem dúvida,
tais realidades começaram a ser condicionadas pelo novo regime que se foi
estabelecendo na Venezuela a partir de 1999. Entre diferentes explicações, é
provável que duas marcaram a pauta. Uma, a influência convicta e confessa do
autor e ativista argentino, Norberto Ceresole, nas ideias e arrazoamentos do
então novo mandatário, Hugo Chávez; e outra, as antigas vinculações de
grupos de extrema-esquerda e fileiras militares – agora tributárias do regime
em formação – com organizações e estados árabes caracterizados por intenso e
violento antissemitismo.
A conexão Ceresole de revestiu
de especial importância, tanto pela densidade da relação e pelo influxo com o
senhor Chávez, como pelo fato de esse cidadão ser um notório antissemita,
propagador do “negacionismo” do Holocausto, cultor de teorias conspiratórias em
torno dos planos de “dominação mundial por Israel”, e expoente aberto de
conceitos e noções socialistas fascistas para serem empregadas pela organização
do estado, da liderança militar e de sinistras modalidades de messianismo
revolucionário populista e demagógico. As demais citadas vinculações, decerto,
têm sido descritas e contextualizadas em investigações jornalísticas e de maior
alcance substantivo por outros, entre os quais, o falecido historiador Alberto
Garrido.
Mas o propósito destas notas
não é tanto o de discernir sobre os fatores pessoais, políticos, ideológicos,
geopolíticos o geopetrolíficos que poderiam explicar o surgimento de um
antissemitismo de estado na Venezuela nesse início de século XXI, como também
para ressaltar que isto se converteu numa política oficial e oficiosa, e que a
mesma se encontra nos pontos opostos da tradição democrática dos venezuelanos.
E tal política vem sendo posta em prática através de múltiplas dimensões. Uma
das mais frontalmente visíveis tem sido a via ‘político-diplomática’,
que provocou a ruptura das relações diplomáticas com Israel e transmutou o
Estado Venezuelano num dos mais raivosos bastiões anti-israelitas do planeta.
Em perfeita contradição, por conseguinte, com a trajetória diplomática da
República e com sua posição constante a favor do diálogo e o arranjo pacífico
dos conflitos internacionais, incluindo os de Israel com seus vizinhos árabes e
com as comunidades sem pátria da Palestina.
Outra dimensão é de caráter declarativo
e comunicacional, na qual porta-vozes autorizados do Estado
“revolucionário”, figurando em primeiro lugar o chefe de Estado, emitem
desqualificações e vitupérios a Israel, seu projeto nacional e sua política
externa. É certo que há temporadas de maior exaltação do que outras, mas no
domínio da comunicação oficial, o tema não deixa de estar presente, e no citado
Informe da CAIV são examinadas centenas de peças de comunicação com claro conteúdo
antissemita, transmitidas por meios de propriedade e gestão estatal, e por
outros meios alinhados ao governo nacional de Chávez.
A dimensão policial
repressiva tem causado grande impacto nacional e externo com os aparatosos
achaques a estabelecimentos da comunidade judia na Venezuela, incluindo centros
educativos. Tal proceder não tem precedentes no país, mas é que tampouco
tem precedente ou mesmo referência na América Latina da nossa época. E é essa
faceta da política antissemita que tem sido levada a cabo abertamente por
organismos da segurança nacional, ou seja, a polícia política do Estado.
Há também uma dimensão politico-acusatória,
marcada pela denúncia contra Israel e seus serviços de segurança de levar
adiante ‘campanhas de desestabilização’ do governo, nas quais se chegou a
insinuar o planejamento do assassinato do presidente. A retórica se
assenta na especulação delirante de que as forças policiais da Venezuela
estavam sob o controle de israelenses até o advento da “revolução”, e que seu
lastro ainda permaneceria infiltrado em resquícios de círculos oficiais, pelo
que sua capacidade de subversão deve ser combatida e erradicada…
Deste modo, se promove uma
dimensão vandalo-terrorista caracterizada por assaltos e agressões a
sinagogas, grafitagem ofensivas aos judeus nas proximidades dos
estabelecimentos religiosos, educativos, ou recreativos da comunidade hebraica,
com envio de grupos “oficiosos” para insultar e amedrontar os frequentadores em
seus centros de atividade religiosa, e em geral a criação de um clima de
intimidação direcionado aos venezuelanos de religião e ascendência judia.
E não pode faltar nesta lista
elementar, a dimensão ideologico-proselitista, desde o início
monitorizada pelo regime nacional, e estruturada por um conjunto de eventos,
conversas e exposições de eloquente orientação judeófoba, que são levadas a
cabo nas sedes de organismos públicos, com o patrocínio das autoridades
nacionais, ou seja, financiadas com dinheiro público.
Como pode ser apreciado, a
fabricação e o fomento do antissemitismo na Venezuela de Chávez não tem sido
nem uma aventura improvisada nem uma espécie de capricho secundário de algum
hierarca específico. Não. Tem sido mesmo uma política, reitero, tanto
oficial como oficiosa, e esta última em relação as suas derivações
vandálicas ou terroristas, sendo a mais grave de todas, até agora, a profanação
da Sinagoga de Maripérez, em Caracas.
Duas considerações finais se
fazem necessárias. A primeira consiste em que esse tipo de antissemitismo não
irrompe como consequência da realidade social e cultural do país, mas resulta
de uma ação deliberada e politicamente motivada a partir dos centros de poder
estatal. Daí a sua conotação de ‘antissemitismo de estado’.
E a segunda é a que mostra
que, se bem que o antissemitismo tem carecido de sustento social em sua
trajetória venezuelana, ele não significa que o antissemitismo de estado não
tenha impactos de importância na subversão dos valores correspondentes na
sociedade nacional. Em outras palavras, não se deve subestimar seu
efeito persuasivo em setores politicamente afins com o regime imperante, e, por
conseguinte, a sua disseminação na consciência coletiva de una parte
significativa dos venezuelanos.
Este antissemitismo fabricado,
planejado, pode e deve ser superado, não apenas pela sua natureza divisiva,
discriminatória, e violentadora dos direitos e garantias individuais dos
venezuelanos judeus, mas pelo imenso dano que se está produzindo no conjunto
geral da sociedade venezuelana, com a venenosa inoculação de mensagem, o
prejuízo, e a prática antissemita. E claro está, para tal é indispensável
que haja uma mudança em profundidade na condução do estado.
Título, Imagem e Texto: Fernando Luis Egaña, Reporte Católico Laico, 04-11-2012
Tradução: Francisco Vianna
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