segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Como se urde o antijudaísmo na 'Venezuela do século XXI'

Fernando Luis Egaña 
O que o regime imperante na Venezuela tem se empenhado em fomentar e praticar em termos de antissemitismo e antijudaísmo no país, ao longo dessas duas décadas iniciais do século XXI, é uma realidade que além de ostensiva está profusa e devidamente documentada. Bastará, por exemplo, uma revisão sumária da publicação: “Antissemitismo na Venezuela - Informe 2011″, preparada pela Confederação de Associações Israelitas da Venezuela (CAIV), e editada em março de 2012, para se ter conta suficiente do assunto.
E esta campanha fenomenal de antijudaísmo instigado e imposto a partir do poder do estado, não tem dada a ver com a tradição pública nacional nem com o ambiente sociocultural do país, nem tampouco com nada que não seja a importação de doutrinas discriminatórias que visam minar os valores longamente sedimentados pelos venezuelanos desde os primórdios da colonização espanhola e que tem como um dos objetivos desmoralizar e fomentar o ódio contra o Estado de Israel, em primeiro lugar, mas também contra as comunidades hebraicas de qualquer parte do mundo e, máxime na Venezuela, por razões de um radicalismo revolucionário que mimetiza o levado a cabo por Adolf Hitler e seu Partido dos Trabalhadores da Alemanha nos idos de 1930, ou por critérios de identificação com os interesses de organizações nacional-socialistas (nazistas e fascistas) de determinados Estados do Oriente Médio, ou ainda por outras motivações político-proselitistas de fundo populista e demagógico que, em nenhum caso, repito, provém da maneira de ser e de pensar dos venezuelanos, mas, aliás, bem ao contrário dela.
Nesse sentido, vale a pena destacar algumas experiências acerca do quão distante sempre esteve qualquer sentimento antissemita da sociedade venezuelana antes desse início do século XXI. E não me refiro à reconhecida amplitude e hospitaleira recepção que sempre teve a imigração judia, sobretudo durante e depois da Segunda Guerra Mundial, mas tão somente à plena assimilação dessas e outras correntes migratórias judaicas ocorridas no século XX, inclusive anteriormente, sem que existissem quaisquer expressões organizadas de antissemitismo que tivessem provindas de instâncias de poder político, econômico, midiático ou religioso.
Venezuelanos de religião ou ascendência judia podiam ser encontrados à frente de despachos ministeriais, em partidos políticos, em comissões parlamentares, em magistraturas judiciais, em representações diplomáticas, em corporações de empresários, em colegiados profissionais, em atividades liberais, em movimentos vicinais, em meios de comunicação, em universidades e academias, em discussões culturais, em agremiações artísticas incluindo a celebridade, em associações esportivas, e em geral nas mais diversas e significativas áreas de desempenho social venezuelano, sem que o elemento religioso ou a ascendência judia fosse algo mais do que uma mera característica pessoal, como soem ser as identidades religiosas ou as procedências em nações de ampla e dinâmica diversidade cultural.
Pessoalmente, me sinto satisfeito em constatar que durante quase toda a minha escolaridade, desde o primário até a universidade, compartilhei meus estudos e minha amizade com venezuelanos e venezuelanos de religião israelita, sem que na verdade isso me traga à lembrança qualquer episódio ou circunstância que possam estar associados direta ou indiretamente a qualquer sentimento ou manifestação antissemita. De fato, o que, sim, eu me lembro é da consternação e da indignação que era compartilhada pelos sucedidos fatos históricos do Holocausto e outras perseguições aos judeus que ocorreram - e ainda ocorrem - desde sempre, tanto em épocas remotas como recentes, e o absolutamente alheamento que sentíamos em relação a todo elo de nossa realidade imediata, e de nossa maneira de entender o mundo, a sociedade e as relações humanas.
Lembro claramente, também, que ao ocupar uma posição no Conselho de Ministros, compareci a um evento comemorativo muito especial de uma das entidades da comunidade hebraica da Venezuela, e poucas vezes, se tanto, tive a oportunidade de observar uma representação mais qualificada e pluralista da nação, começando por todos os ex-presidentes da República e continuando por grande parte dos titulares dos poderes públicos, e de pessoas emblemáticas do mundo político, social, econômico e cultural do país. Menção a parte merece a diversidade ideológica da ocorrência: socialdemocratas, socialcristãos, socialistas, liberais, radicais, moderados e etc. Nunca havia presenciado o resultado de uma capacidade de convocação parecida. Nunca antes e nunca depois desse evento.
Pouco a pouco, sem dúvida, tais realidades começaram a ser condicionadas pelo novo regime que se foi estabelecendo na Venezuela a partir de 1999. Entre diferentes explicações, é provável que duas marcaram a pauta. Uma, a influência convicta e confessa do autor e ativista argentino, Norberto Ceresole, nas ideias e arrazoamentos do então novo mandatário, Hugo Chávez; e outra, as antigas vinculações de grupos de extrema-esquerda e fileiras militares – agora tributárias do regime em formação – com organizações e estados árabes caracterizados por intenso e violento antissemitismo.
A conexão Ceresole de revestiu de especial importância, tanto pela densidade da relação e pelo influxo com o senhor Chávez, como pelo fato de esse cidadão ser um notório antissemita, propagador do “negacionismo” do Holocausto, cultor de teorias conspiratórias em torno dos planos de “dominação mundial por Israel”, e expoente aberto de conceitos e noções socialistas fascistas para serem empregadas pela organização do estado, da liderança militar e de sinistras modalidades de messianismo revolucionário populista e demagógico. As demais citadas vinculações, decerto, têm sido descritas e contextualizadas em investigações jornalísticas e de maior alcance substantivo por outros, entre os quais, o falecido historiador Alberto Garrido.
Mas o propósito destas notas não é tanto o de discernir sobre os fatores pessoais, políticos, ideológicos, geopolíticos o geopetrolíficos que poderiam explicar o surgimento de um antissemitismo de estado na Venezuela nesse início de século XXI, como também para ressaltar que isto se converteu numa política oficial e oficiosa, e que a mesma se encontra nos pontos opostos da tradição democrática dos venezuelanos. E tal política vem sendo posta em prática através de múltiplas dimensões. Uma das mais frontalmente visíveis tem sido a via ‘político-diplomática’, que provocou a ruptura das relações diplomáticas com Israel e transmutou o Estado Venezuelano num dos mais raivosos bastiões anti-israelitas do planeta. Em perfeita contradição, por conseguinte, com a trajetória diplomática da República e com sua posição constante a favor do diálogo e o arranjo pacífico dos conflitos internacionais, incluindo os de Israel com seus vizinhos árabes e com as comunidades sem pátria da Palestina.
Outra dimensão é de caráter declarativo e comunicacional, na qual porta-vozes autorizados do Estado “revolucionário”, figurando em primeiro lugar o chefe de Estado, emitem desqualificações e vitupérios a Israel, seu projeto nacional e sua política externa. É certo que há temporadas de maior exaltação do que outras, mas no domínio da comunicação oficial, o tema não deixa de estar presente, e no citado Informe da CAIV são examinadas centenas de peças de comunicação com claro conteúdo antissemita, transmitidas por meios de propriedade e gestão estatal, e por outros meios alinhados ao governo nacional de Chávez.
A dimensão policial repressiva tem causado grande impacto nacional e externo com os aparatosos achaques a estabelecimentos da comunidade judia na Venezuela, incluindo centros educativos. Tal proceder não tem precedentes no país, mas é que tampouco tem precedente ou mesmo referência na América Latina da nossa época. E é essa faceta da política antissemita que tem sido levada a cabo abertamente por organismos da segurança nacional, ou seja, a polícia política do Estado.
Há também uma dimensão politico-acusatória, marcada pela denúncia contra Israel e seus serviços de segurança de levar adiante ‘campanhas de desestabilização’ do governo, nas quais se chegou a insinuar o planejamento do assassinato do presidente. A retórica se assenta na especulação delirante de que as forças policiais da Venezuela estavam sob o controle de israelenses até o advento da “revolução”, e que seu lastro ainda permaneceria infiltrado em resquícios de círculos oficiais, pelo que sua capacidade de subversão deve ser combatida e erradicada…
Deste modo, se promove uma dimensão vandalo-terrorista caracterizada por assaltos e agressões a sinagogas, grafitagem ofensivas aos judeus nas proximidades dos estabelecimentos religiosos, educativos, ou recreativos da comunidade hebraica, com envio de grupos “oficiosos” para insultar e amedrontar os frequentadores em seus centros de atividade religiosa, e em geral a criação de um clima de intimidação direcionado aos venezuelanos de religião e ascendência judia.
E não pode faltar nesta lista elementar, a dimensão ideologico-proselitista, desde o início monitorizada pelo regime nacional, e estruturada por um conjunto de eventos, conversas e exposições de eloquente orientação judeófoba, que são levadas a cabo nas sedes de organismos públicos, com o patrocínio das autoridades nacionais, ou seja, financiadas com dinheiro público.
Como pode ser apreciado, a fabricação e o fomento do antissemitismo na Venezuela de Chávez não tem sido nem uma aventura improvisada nem uma espécie de capricho secundário de algum hierarca específico. Não. Tem sido mesmo uma política, reitero, tanto oficial como oficiosa, e esta última em relação as suas derivações vandálicas ou terroristas, sendo a mais grave de todas, até agora, a profanação da Sinagoga de Maripérez, em Caracas.
Duas considerações finais se fazem necessárias. A primeira consiste em que esse tipo de antissemitismo não irrompe como consequência da realidade social e cultural do país, mas resulta de uma ação deliberada e politicamente motivada a partir dos centros de poder estatal. Daí a sua conotação de ‘antissemitismo de estado’.
E a segunda é a que mostra que, se bem que o antissemitismo tem carecido de sustento social em sua trajetória venezuelana, ele não significa que o antissemitismo de estado não tenha impactos de importância na subversão dos valores correspondentes na sociedade nacional. Em outras palavras, não se deve subestimar seu efeito persuasivo em setores politicamente afins com o regime imperante, e, por conseguinte, a sua disseminação na consciência coletiva de una parte significativa dos venezuelanos.
Este antissemitismo fabricado, planejado, pode e deve ser superado, não apenas pela sua natureza divisiva, discriminatória, e violentadora dos direitos e garantias individuais dos venezuelanos judeus, mas pelo imenso dano que se está produzindo no conjunto geral da sociedade venezuelana, com a venenosa inoculação de mensagem, o prejuízo, e a prática antissemita. E claro está, para tal é indispensável que haja uma mudança em profundidade na condução do estado.
Título, Imagem e Texto: Fernando Luis Egaña, Reporte Católico Laico, 04-11-2012
Tradução: Francisco Vianna

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