Reinaldo Azevedo
Em 1998, a Bertrand Brasil
publicou em português a tradução da monumental biografia do arquiteto alemão Albert Speer (1905-1981),
escrita por Gitta Sereny, que traz o subtítulo “Sua Luta com a Verdade”.
Monumental também no tamanho: 1005 páginas. Leva tempo, sim, mas não é leitura
pedregosa. Resenhei o livro à época, mas não consigo achar o texto. Speer
também era metade muito competente (“gênio” seria exagero) e metade idiota – só
que a sua metade idiota era nazista, não comunista. Ele teve a má sorte de as circunstâncias
se casarem perfeitamente com sua inclinação ideológica e com o seu talento. E
ele se tornou um dos homens fortes do Terceiro Reich. Foi julgado em Nuremberg,
escapou da morte, mas pegou 20 anos de cadeia, de onde saiu só em 1966. No
período, escreveu dois livros “Por Dentro do Terceiro Reich” e “Spandau”, o
nome da prisão em que ficou. Em 1981, numa viagem a Londres, teve um AVC e
morreu.
No texto de ontem à tarde
sobre a reportagem de capa de VEJA e a falsa polêmica criada pela rede petralha
por causa dos posts que publiquei sobre Oscar Niemeyer, escrevi: “Num outro
post, que fica para mais tarde, eu vou explicar o que livrou o nosso maior
arquiteto de ser um autor de ruínas. Eu vou explicar por que a derrota da
metade idiota preservou, para o bem da arquitetura, a metade gênio.”
Fazia justamente uma alusão a
Speer, um homem de grande talento, sem dúvida, que caiu nas graças de Hitler e
projetou algumas das obras do Terceiro Reich – quase nada sobrou –,
tornando-se, depois, Ministro do Armamento. O documentário “Arquitetura da
Destruição”, de Peter Cohen (existe em todas as locadoras; é brilhante!), fala
de Speer e acaba atribuindo a Hitler uma fixação que era, na verdade, do
arquiteto: ele dizia que obras arquitetônicas também deveriam ser pensadas como
futuras ruínas, mil anos adiante. Elas seriam evidências da grandeza alcançada
pelo Terceiro Reich porque é assim que vemos o que restou das civilizações
grega e romana…
Oscar Niemeyer era adepto de
uma ideologia felizmente minoritária no Brasil. Se, por qualquer razão, o
comunismo houvesse vencido, certamente seria o arquiteto do regime, que se
exerceria, claro!, segundo os rigores que ele próprio tanto apreciava em Stálin
– o homem que, segundo disse, fazia julgamentos “justos” antes de fuzilar seus
desafetos.
A biografia de Speer é
fascinante porque afasta a ideia um tanto infantil, pautada pelo cinema, que
fazemos de lideranças nazistas: seres sempre irascíveis, ignorantes, violentos,
arrogantes. No trato pessoal, fica evidente, as relações podiam ser suaves, até
doces. Como é que o mal, no entanto, ganhou tal dimensão? Na página 260 do
livro, Gitta Sereny escreve (prestem bastante atenção!):
“Entre
1933 e 1937, a maior parte do mundo admirou as ideias pioneiras de Hitler.
Durante os seus primeiros quatro anos como chanceler, ele expandiu o sistema
de saúde e de previdência social, bem como os benefícios aos idosos iniciados
pioneiramente por Bismarck e depois adotados pela República de Weimar. Seu
complexo sistema de obras públicas incluiu uma malha de Autobahnen, inovações
como centros urbanos livres da presença de tráfego, com rigorosos controles de
poluição, além da ampliação de parques e áreas verdes. (…) John Toland
escreveu em seu ‘Afolf Hitler’: ‘Se ele tivesse morrido em 1937, certamente teria
sido enterrado como uma das maiores figuras da história da Alemanha”.
Pouca gente se lembra ou sabe,
mas Gertrude Stein – sim, ela mesma! – afirmou que Hitler deveria ganhar o
Prêmio Nobel da Paz. Outro que o defendeu com paixão foi Bernard Shaw. “Hitler
é um líder nato, uma personalidade dinâmica, com uma vontade de ferro e um
espírito indômito, e tem a confiança dos velhos e a idolatria dos jovens”,
escreveu David Lloyd George no Daily Express depois de assistir aos
Jogos Olímpicos de 1936.
E Hitler, no entanto, nesses
anos ainda iniciais do desastre, já havia dado mostras da barbárie a que
poderia conduzir a Alemanha — e o mundo, dadas as circunstâncias – se
pusesse em prática, como pôs, as suas ideias. Em 1926, os dois volumes de “Mein
Kampf” já haviam sido publicados. Em 1935, entraram em vigor as Leis de
Nuremberg, que cassaram a cidadania dos judeus alemães, banidos de qualquer
função pública. Não obstante, era admirado por seus “espírito inovador”…
Como pôde Speer, um homem de
talento, servir ao horror com tanta dedicação? Ele só deixou de obedecer à
ordem final de Hitler, o “Decreto Nero”, que mandava que as forças alemãs
literalmente incendiassem o país, destruíssem toda a infraestrutura, muito
especialmente as pontes, para dificultar a ocupação pelos Aliados. Speer fez
justamente o contrário: tomou providências para que não acontecesse — pelo
menos na área sob sua influência.
Por quê?
Por que os homens de gênio podem servir ao terror? Niemeyer não foi o nosso Speer porque não tivemos o nosso Hitler, mas não houve facínora comunista a quem não tenha emprestado seu apoio. Afinal de contas, a sua ideologia, a exemplo da do arquiteto do Reich, lhe impunha que ignorasse o horror presente em nome de uma visão de futuro.
Na página 646 do livro, Gitta Sereny
transcreve um trecho de “Por Dentro do Terceiro Reich”. Ali fica evidente que
Speer sabia, sim, da “solução final”, embora preferisse não pensar no assunto.
E cumpriria perguntar: “Como não saber”? Um fio de dignidade lhe coube.
Escreveu: “(…) declarei a Corte Internacional de
Nuremberg, durante o julgamento, que, como um importante membro do escalão de
liderança do Reich, eu tinha de arcar também com toda a responsabilidade por
tudo o que havia acontecido (….). E até hoje eu me sinto totalmente responsável,
em termos pessoais, pelo que aconteceu em Auschwitz”. Speer foi o único
da cúpula nazista que não procurou ou negar os eventos ou alegar a obediência
devida.
Uma parágrafo do livro, à
página 987, é perturbador: “Speer, por si
mesmo, não matou ninguém nem sentiu nenhuma animosidade, ódio ou até mesmo
aversão pelos milhões de europeus orientais, cristãos e judeus que foram
sistematicamente aniquilados; ele não sentiu nada.” Depois, tudo indica,
passou um bom tempo sendo corroído pela culpa.
Eis aí: temamos a capacidade
que têm certos homens – ainda que geniais – de não sentir nada diante do
horror. Speer, de fato, serviu a Hitler, e Niemeyer não serviu pessoalmente a
Stálin. Mas integrou uma geração de intelectuais mundo afora que esconderam ou
justificaram sistematicamente os crimes cometidos pelo comunismo. Mas os crimes
de Stálin eram conhecidos desde sempre? Só para registro: o escritor
francês André Gide, por exemplo, denunciou a tirania já em 1934, depois de uma
viagem ao país — “Retour de l’URSS” — e foi tratado como escória pelos
intelectuais de esquerda. Como era homossexual, sua crítica foi tomada apenas
como chiliques de uma bicha… Vocês sabem como os esquerdistas são
incapazes de ser preconceituosos, não é mesmo?
O arquiteto brasileiro, como
resta evidente por seus textos escritos até os momentos finais, não viveu a
fase da remissão. Ao contrário: Stálin morto, o homicida em massa lhe restou
como uma referência de “homem fantástico”. Não faz tempo, fiel à sua luta,
Niemeyer recebeu um representante dos narcoterroristas das Farc para colaborar
com a causa.
Speer, que não matou ninguém
com as próprias mãos, pergunta-se até onde ele poderia ter ido, naquele
ambiente, sob uma ordem de Hitler. Ele se pergunta, mas não responde.
Se um dia vocês lerem “Stálin
– A Corte do Czar Vermelho”, de Simon Sebag Montefiore, prestem especial
atenção ao capítulo 26, intitulado “A Tragédia e a Depravação da Família
Iejov”(página 319 e seguintes), que mostra a que extremos podia chegar o poder
absoluto do “homem fantástico”, que Niemeyer tanto admirava. Há passagens que
remetem a “Saló, ou os 120 dias de Sodoma”, o filme-limite, quase impossível de
ver, de Pasolini.
Nada tenho a fazer com a
estupidez dessa canalha que fica babando seu fel na rede – e que, de fato, não
está nem aí para o que escrevi sobre Niemeyer. Trata-se apenas de um pretexto
para me atacar por causa de mensalão, Rosegate e outros lambanças com dinheiro
público praticadas pelo petismo.
Niemeyer teve a grande sorte
de ver suas ideias políticas derrotadas no Brasil. Por aqui, foi a democracia
que encomendou e ergueu as suas obras. Mas emprestou, sim, infelizmente, o seu
talento para a tirania e para tiranos. E essa sua metade idiota não merece nem
admiração nem perdão. Porque, sob ela, jazem muitos milhões de cadáveres. E eu
tenho um compromisso com a vida, com a liberdade e com os valores da
democracia, não com fascistas, de esquerda ou de direita.
PS
– A baixaria nas redes sociais atinge níveis inéditos. Sites financiados por
estatais abrem suas respectivas áreas de comentários para o xingamento puro e
simples. Nada que seja incompatível com essa gente, mas espantoso ainda assim.
Não entrem no jogo. Na lama, eles têm mais habilidade.
Título e Texto: Reinaldo Azevedo,
09-12-2012, 11h39 (TMG)
Por feliz acaso este editor
leu essa biografia de Albert Speer.
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