Pedro Correia
A esquerda radical nunca
perdoou o reformismo de Mário Soares. O fundador do PS descolou o partido da
órbita comunista, integrando-o ainda antes do 25 de Abril como força autónoma
da oposição à ditadura. Após a Revolução dos Cravos, Soares liderou o PS no
combate ao extremismo esquerdista - e foi mil vezes atacado por isso. Enfrentou
com sucesso as tentativas do PCP de hegemonizar a esquerda portuguesa, fez
alinhar os socialistas com a social-democracia europeia, opôs-se aos militares
radicais que após 1976 pretenderam manter a tutela sobre o poder civil,
decretou políticas de contenção financeira quando esse era um imperativo
patriótico destinado a evitar a bancarrota, encaminhou o País para a integração
europeia e nunca hesitou em separar águas na defesa permanente da democracia
representativa.
Este é o Soares que todos
conhecemos. Já o Soares dos últimos anos, que parece querer transformar o PS
numa espécie de partido irmão do Bloco de Esquerda, está irreconhecível. Porque
desmente a todo o passo a sua própria biografia política - uma biografia que
sempre se opôs ao "frentismo" de esquerda, ao aventureirismo extremista
e a todas as tentativas de cortar o passo à democracia representativa,
nomeadamente através da diminuição do papel do Parlamento no conjunto das
instituições políticas portuguesas.
O Soares de 2012 diz coisas
semelhantes às que o PCP disse dele quando foi Governo, entre 1976 e 1978,
primeiro, e de 1983 a 1985, depois - dois mandatos que decorreram sob o signo
da crise financeira e da intervenção de emergência do FMI para sanear as contas
nacionais. Também os comunistas disseram então que Soares queria "destruir a democracia". Também os comunistas se apressaram a passar certidões de óbito aos governos que liderou. Também os frentistas de esquerda
chegaram a propor Executivos "de iniciativa presidencial" sem o recurso a eleições, como mandam as boas regras democráticas. Também a esquerda
radical lhe apontou por diversas vezes a porta da rua, para "mudar de política".
Bem fez António José Seguro, através do seu líder parlamentar, ao lembrar ao fundador do PS que os governos não
caem por pressão das ruas ou de cartas abertas: a democracia tem regras
próprias que devem ser respeitadas. Era isso, aliás, que o Soares das décadas de 70, 80 e 90 defendia - por vezes
contra fortíssima pressão partidária e mediática. É isso que, estranhamente, o
Soares de 2012 parece ter deixado de defender.
Tudo isto sucede quando outra
figura de referência do socialismo europeu, Felipe González, recomenda aos
socialistas espanhóis um percurso inverso ao que Soares hoje defende: em vez de
um partido a caminhar cada vez mais para a esquerda, o homem que há 30 anos levou o PSOE a um triunfo esmagador nas urnas aconselha os seus
pares a retomar a "vocação de maioria" para recuperar o centro.
"OPSOE [Partido Socialista Operário Espanhol] perdeu a vocação de maioria e tem de recuperá-la. Tem de conseguir isto encarando a sociedade e auscultando as suas necessidades. Não de forma sectária, mas com espírito de consenso."
Palavras de González que Seguro deve escutar com atenção. Por estarem em linha
com as teses do Mário Soares que venceu eleições em 1976, 1983, 1986 e 1991.
Não com o Soares que saiu derrotado das presidenciais de 2006 e desde então
parece caminhar em colisão com a rota que sempre traçou.
Imagens: Felipe González e Mário Soares (2010). Um quer hoje os
socialistas a virar ao centro, outro defende um PS ainda mais à esquerda
Título, Imagens e Texto: Pedro Correia, Forte Apache, 04-12-2012
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