Parece que o deputado Marco Feliciano (PSC-SP) está por um fio na
presidência da Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara. Agora não são
apenas alguns deputados de esquerda e sua entusiasmada tropa de choque, além da
quase unanimidade da imprensa, a pressionar por sua renúncia. Consta que também
o presidente da Câmara, Henrique Eduardo Alves (PMDB-RN), homem, como se sabe,
de biografia incontroversa, a tirar uma casquinha da unanimidade das minorias
que passa por maioria. Também ele quer a saída de Feliciano, e isso certamente
ajudará a lavar o seu currículo. Decidiu entrar também na malhação de Judas e
ser um dos “caras do bem”. Adiante.
O que o deputado pastor, cujas ideias podemos repudiar — e eu repudio algumas —, tem a ver com a liberdade de pensamento, de expressão e de representação? Alguns responderão de imediato: “Nada! Ele tem de sair de lá. Aquela comissão tem de ser presidida por Jean Wyllys (PSOL-RJ); ele, sim, sabe tudo sobre liberdade e tolerância”. É uma forma de ver o mundo. Eu, que discordo da prática política e das ideias tanto de Wyllys como de Feliciano, continuo fiel à máxima de que a liberdade é e será sempre a liberdade de quem discorda de nós. A liberdade que só se exerce entre iguais é ditadura do consenso — e, por ditadura que é, esse consenso é necessariamente falso.
No que concerne à liberdade de expressão e de pensamento e ao livre
trânsito das ideias, dois mundos estão em conflito: um é antigo e bom; o outro
é novo é ruim. Não há uma regra nessas coisas. Costumo dizer que nem tudo o que
é contemporâneo é “moderno”. Esse adjetivo tem um amplíssimo espectro. Eu lhe
dou um acento particular, tratando-o como sinônimo de inovador e capaz de
tornar realidade nossas melhores potencialidades. Da
mesma sorte há novidades que implicam retrocessos; há contemporaneidades que
nos puxam para trás. Pausa para falar de um seminário e para dar
relevo a uma fala que nos remete àquele mundo antigo, “moderno” e bom (nesse
particular), em contraste com um outro, novo, reacionário e ruim.
Na manhã desta quarta, realizou-se no Rio o painel “Liberdade de
Expressão Global”. Foi promovido pela Universidade Columbia, de Nova York, e
pela ONG Instituto Palavra Aberta. A Columbia decidiu abrir no Rio um de seus
centros de pesquisa. Estavam presentes o ex-ministro do STF Ayres Britto e
jornalistas que comandam importantes redações no país.
Lee C. Bollinger, presidente da Columbia, um estudioso das implicações
práticas da Primeira Emenda da Constituição dos EUA — aquela que proíbe o Congresso
até mesmo de legislar sobre liberdade de expressão —, fez uma afirmação
importantíssima:
“O país [os EUA], liderado pela Suprema Corte, se deu conta de que, numa democracia, é preciso proteger fortemente a liberdade de expressão e de imprensa. E isso significa proteger inclusive os discursos falsos, discursos perigosos, que advogam a violência, que zombam, criticam ou mesmo dizem coisas falsas sobre servidores públicos. O escopo da liberdade de expressão deve ser tão amplo que todos se sintam seguros quando se manifestam publicamente sobre temas públicos.”
“O país [os EUA], liderado pela Suprema Corte, se deu conta de que, numa democracia, é preciso proteger fortemente a liberdade de expressão e de imprensa. E isso significa proteger inclusive os discursos falsos, discursos perigosos, que advogam a violência, que zombam, criticam ou mesmo dizem coisas falsas sobre servidores públicos. O escopo da liberdade de expressão deve ser tão amplo que todos se sintam seguros quando se manifestam publicamente sobre temas públicos.”
Pois é… Essa é a fala que pertence a um mundo antigo, moderno e bom. A
liberdade de pensamento e de expressão não existe apenas para as pessoas com
cujos valores comungamos. Em certa medida, dá-se justamente o contrário: seus
limites só são testados quando aquilo que repudiamos vem à tona. E há,
obviamente, uma diferença entre o repúdio à expressão de uma determinada ideia
e a censura, entre a contestação viva do que diz o outro e a intimidação e a
violência para impedi-lo de dizer. “Então pode tudo?” Não! As democracias
necessariamente têm salvaguardas para desagravar a honra dos que são
eventualmente ofendidos e para punir os que injuriam, caluniam e difamam. A
censura não é um desses instrumentos porque ela não pertence à ordem
democrática.
“O pastor não tem nada com essa história; cuida-se aí da imprensa,
Reinaldo, é outro assunto!” Não é, não! Aliás, ele tem mais a ver com o
caso do que o jornalismo. A razão é simples: tem um mandato popular e
representa um grupo de eleitores. Em tese ao menos, eles concordam com o seu
pensamento, como os de Jean Wyllys com os do seu representante.
No mundo antigo, moderno e bom, distingue-se a palavra da ação, o
pesamento do incitamento ao ódio, a discordância da sabotagem. No mundo
contemporâneo, velho e ruim, um determinado grupo de ideias, que implicam
necessariamente valores ideológicos, é tomado como medida de progresso e
sinônimo do bem, do belo e do justo. Ou se está, logo à partida, em consonância
com esses valores, ou os indivíduos perdem o direito de se expressar no mundo
dos vivos.
A própria imprensa, com raras exceções, tem sido cúmplice dessa novidade
antimoderna, dessa contemporaneidade reacionária. Entrega-se de forma
desabrida, por exemplo, à demonização do pastor Feliciano (ele foi alvo de uma
campanha, pasme-se, homofóbica e racista nas redes sociais porque alisa o
cabelo meio carapinha, e isso foi tratado em tom de galhofa!), certa de que ele
representa as hostes do atraso, em confronto com os vanguardistas do bem.
Ocorre que os vanguardistas do bem, nesse caso, querem é eliminá-lo do
jogo e não vencê-lo no confronto de ideias e de valores. Para tanto,
mobilizam-se na base mesmo da tropa de choque. Nesta quarta, mais uma vez, a
sessão da Comissão teve de ser suspensa. Bastam 30 ou 40 pessoas gritando para
tornar inviável qualquer trabalho. E se os que pensam o contrário decidirem
também mobilizar a sua turma?
A rigor, isso aconteceu, e se gritou: “Escândalo!”. Um vídeo produzido
por aliados de Feliciano acusa seus desafetos, seleciona pronunciamentos
polêmicos de deputados que pedem a sua cabeça, aponta uma espécie de marcha
contra os valores da família etc. e tal. Algumas falas de parlamentares,
selecionadas e descoladas do contexto, podem parecer mais graves do que são.
Mas pergunto: fez-se coisa muito diferente com o pastor? Aquele tuíte em que
ele teria praticado racismo, por exemplo, foi devidamente contextualizado? Não
se tentou atribuir ali a um textinho infeliz um peso que obviamente não tem? Da
mesma sorte, indago: ser contrário ao casamento gay é necessariamente expressão
de “homofobia”? Em que mundo?
Se os valores da liberdade de expressão valem para a imprensa, como quer
Lee C. Bollinger, tanto mais devem valer para um parlamentar. Além de ter
assegurados os direitos constitucionais que assistem a todo indivíduo, ele tem
a força da representação e a imunidade legal para dizer o que pensa. Em que
ordem de coisas, em que dimensão metafísica, em que instância superior da
verdade está escrito que o presidente de uma comissão, mesmo chamada de
“Direitos Humanos e Minorias”, tem de concordar com a pauta deste ou daquele
grupo?
A IMPRENSA, COM RARAS EXCEÇÕES, ERRA DE FORMA ABSURDA NESSE CASO. PÕE
UMA CORDA NO PRÓPRIO PESCOÇO. Quem disse que, amanhã, outras minorias
fantasiadas de maiorias que são donas do consenso não podem voltar suas
baterias contra o próprio jornalismo? Por que não? Os detratores da liberdade
de imprensa estão em toda parte. Nós, os jornalistas, estamos cansados de
explicar a pais dos coleguinhas de nossos filhos, naquelas agradáveis festas de
bufê infantil, que a gente publica tudo o que sabe, desde que devidamente
apurado, que não ficamos amoitando informações, que não conspiramos pelos
cantos etc. Ainda que os detratores da liberdade de imprensa tenham avançado
muito menos do que gostariam, já foram mais longe do que deveriam em seu
trabalho de difamação do jornalismo.
Eu insisto num aspecto, que fazem questão de ignorar em nome da defesa
da “justiça”: há uma grande, uma gigantesca! diferença entre combater o que
pensa Feliciano e submetê-lo a verdadeiras milícias. O assédio não se limita ao
Congresso. Estão fazendo manifestações em frente aos templos de sua denominação
religiosa. Impedem ou perturbam o culto, mas asseguram: “Não é preconceito!”.
Não é? Em um dos vídeos, um grupo grita “saravá, saravá…” Pergunta óbvia: se um
grupo de evangélicos interromper um culto num terreiro de umbanda ou
candomblé, será ou não acusado de intolerância religiosa?
A liberdade existe também para os que pensam de
modo diferente; a liberdade existe também para os que achamos poucos
inteligentes; a liberdade existe também para aqueles que não julgamos à altura
de determinados desafios. E
existe a liberdade para que nos manifestemos contra eles, mas dentro do escopo
democrático, e o que está em curso há muito rompeu a linha do razoável (ou
“rasoavel”, segundo a língua mercadante).
No país de Lee C. Bollinger, o presidente da Universidade Columbia,
autor daquela frase iluminada sobre liberdade, um grupo de celerados,
pertencentes a uma igreja que reúne meia dúzia de iguais, costumava comparecer
a velórios de soldados mortos no Afeganistão e no Iraque para agradecer a Deus
pelo ocorrido. Abriam cartazes com dizeres dessa natureza. Sabem por quê? Segundo
eles, a morte desses soldados era uma punição divina por causa da tolerância
dos EUA com a homossexualidade. Formam um bando de malucos, de celerados, de
asquerosos? Acho que sim! Um dos pais das vítimas recorreu à Justiça contra os
doidos. Decisão: a Primeira Emenda impede que se coíbam manifestações dessa
natureza, por mais alopradas que sejam.
Feliz é o país que tem uma Justiça que pensa assim. Não porque se possa,
ainda que remotamente, concordar com o mérito, mas porque o estado que se nega
a censurar esse tipo de coisa — e que, na verdade, garante o direito à
manifestação — também se impede de estabelecer verdades oficiais, que não podem
ser questionadas pelos cidadãos.
A liberdade não é um adorno de luxo ou um mero
adereço do regime democrático.
Constitui a sua essência — atenção para isto! —, mais ainda do que a Justiça ou
a igualdade. Não costuma acontecer, mas, em tese, do ponto de vista das ideias
puras, um estado ditatorial também pode praticar justiça social e garantir a
igualdade. Nuca se viu na história da humanidade, mas não há uma
incompatibilidade de essências. Já a liberdade,
meus caros, esta é incompatível com as ditaduras; esta só existe nas
democracias. É assim faz tempo. O rei filósofo de Platão era justo, mas não
democrático…
Opere-se, então, com a lógica elementar: se
democracias e ditaduras, em princípio ao menos, podem conviver com a justiça e
com a igualdade e se a liberdade só é possível no regime democrático, é a
liberdade, e não a justiça e a igualdade, que define a democracia.
Até porque, com ela, podemos reivindicar e alcançar as outras duas. Já os
regimes autoritários, como é sabido, costumam oferecer uma troca indecente: em
nome da suposta igualdade e justiça (quase sempre ilusórias), exigem que lhes
doemos a nossa liberdade.
Se a lógica da reparação de injustiças históricas e do direito das ditas
minorais não consegue conviver com a diferença e com a liberdade de expressão,
então estamos diante de uma forma particularmente perversa de ditadura. E não!
Eu não concordo com o que pensa Feliciano, como todo mundo sabe. Mas eu
concordo com o seu direito de dizer o que pensa: na sua Igreja, no Parlamento,
na comissão, na rua, na chuva, na fazenda ou numa casinha de sapé.
Observo como arremate que o fato de alguém, exercendo a democracia,
dizer coisas que deploro não me faz aderir a suas tolices porque, afinal de
contas, nascidas da democracia. Da mesma sorte, o fato de autoritários dizerem
coisas com as quais concorde não me faz aderir ao autoritarismo virtuoso.
É precioso tomar cuidado com o entusiasmo dos bons linchadores.
Título e Texto: Reinaldo Azevedo,
21-03-2013
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