Uma das características mais bizarras do nosso tempo é a quantidade de
pessoas que vive e dispõe do dinheiro dos outros. Aliás a comunicação social
quase só trata disso. Do défice orçamental aos fundos da troika, das exigências
de apoios e cortes, despesas e subsídios, esta crise é, no essencial, uma luta
pelo dinheiro alheio.
A principal causa do fenómeno está, sem dúvida, no aumento brutal da
dimensão do Estado. No século XIX as despesas públicas eram em média apenas 5%
do minúsculo PIB da época. No final da Primeira República esse peso já tinha
duplicado. Duplicou outra vez até 1974, altura em que Estado gastava um quinto
daquilo que o povo produzia. Em 2010 esse valor ultrapassou 50%, tendo a
austeridade da troika reduzido já para 45%. Quando o Orçamento do Estado lida
com cerca de metade do que o país tem, há mesmo muita gente a viver de dinheiro
alheio.
Nas grandes empresas acontece algo semelhante, pois aí tudo pertence a
uma multidão de accionistas, e as despesas de um departamento pouco têm a ver
com o valor final do produto. Não admira que muitos gestores tomem atitudes
semelhantes a serviços públicos, talvez menos descaradas. Também eles gastam
dinheiro dos outros.
A União Europeia trouxe novos cambiantes ao processo, permitindo viver de
dinheiro longínquo. É incrível que tantas pessoas se sintam com direito à
riqueza de regiões que nunca viram nem conheceram. Se o capital nacional fosse
para longe, ficariam horrorizadas, mas acham normal exigir uma parte da fartura
alemã.
O paroxismo do processo surgiu com a globalização de capitais, que
permite usar dinheiro de desconhecidos. Em si mesmo, o crédito não significa
obter fundos alheios, pois pagaremos amanhã o que gastamos hoje. Mas numa crise
financeira como a actual, há fortes probabilidades de nunca se pagar, o que
muda tudo.
É verdade que estas novas formas retiram muito do pejorativo da expressão
tradicional "amigos do alheio". Hoje boa parte do gasto de dinheiro
dos outros não constitui roubo. O funcionário público trabalha duro para
receber o merecido ordenado, e o sector subsidiado tem razões para o ser.
Apesar disso o facto de a verba vir de outrem traz sempre elementos
perturbadores.
O primeiro problema é a indefinição. Um padeiro sabe que o que recebe
depende do que produz. Mas o funcionário, reformado, sindicalista, subsidiado,
não tem noção do seu real valor. Os montantes acabam determinados por conceitos
abstractos, como justiça ou necessidade, progresso ou interesse. Isso permite
subir muito as verbas, como aconteceu por cá até 2011, ou cortar imenso, como
desde então.
O segundo aspecto é a facilidade com que se gasta o dinheiro alheio. Numa
escola pública, onde propinas e ordenados nada têm a ver com os valores do
produto envolvido, pais e professores fazem exigências ao ministério que nunca
se ouviriam em estabelecimentos cujas verbas disponíveis vêm do bolso dos
alunos. Note-se a displicência com que ministros e autarcas se apropriam dos
montantes orçamentados e fundos estruturais, que não lhes custam a ganhar. Um
médico de um grande hospital, mesmo privado, receita exames e tratamentos que
omitiria se ele ou o doente tivessem de pagar a conta. Em certos casos essa
facilidade torna-se uma verdadeira toxidependência.
O aspecto mais curioso são as razões que levam pessoas honestas e bem
intencionadas a despender com vigor o que não é seu. Elas nascem de duas
perigosas armadilhas. A primeira é a convicção de que o dinheiro não faz falta
aos donos. As pessoas fingem acreditar que as verbas públicas vêm de ricos, o
que permite, sem peso na consciência, exigir mais apoios, subsídios, estradas e
despesas. Isso apesar da evidência de, mesmo que os milionários pagassem o que
devem, seriam largamente insuficientes para metade do PIB. O outro engano é
achar que, se eu não o gastar, outro departamento o vai desperdiçar, o que
equivale ao mesmo: o dinheiro não faz falta aos outros. Em qualquer caso, só
pode ser patética uma época que tanto abusa do dinheiro alheio.
Título e Texto: João César das Neves, Diário de Notícias, 03-06-2013
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