Há lateralidades em situações
e personagens que insistem em nos dizer alguma coisa. Lembro-me de um texto
divertido de Gore Vidal em que ele encana com a peruca torta de um adversário
de debate. O ministro Roberto Barroso, do STF, não usa peruca, mas ele tem uma
fitinha no pulso, que parece, à distância, meio esgarçada. Não sei se é do
Senhor do Bonfim ou de algum orientalismo qualquer. Mas esta lá. Quando ele
gesticula, ela aparece. Um senhor na sua posição e na sua faixa etária usar um
adorno como aquele sempre significa alguma coisa. Tendo a achar que está a nos
dizer que é um homem, sei lá, de pensamentos singulares, o que explica, por
exemplo, ter entre seus artistas prediletos Taiguara. Ou ainda: nele, a razão
do juiz se deixa enternecer por alguma forma de crença — mas não uma crença
convencional. Ou ainda: erudito e popular se encontram, ali na fronteira em que
se salta de Beethoven para Ana Carolina. Se aquela fitinha não quisesse dizer
nada, não estaria ali como um “punctum” na tela — ficaria escondida sob o punho
da camisa. Que significa alguma coisa, isso significa. E uma das nossas tarefas
é interpretar signos.
A fitinha é um emblema,
parece-me, de uma certa heterodoxia analítica que, tudo indica, não é estranha
à sua obra. Só li um livro seu. Mas achei lá um monte de pensamentos com
fitinhas, de leituras da Constituição com fitinhas, de interpretação com
fitinhas. Não foi diferente nesta quarta-feira. Ao rejeitar os embargos de
declaração interpostos pela defesa de José Genoino, afirmou: “Pessoalmente,
lamento condenar um homem que participou da resistência à ditadura (…). Lamento
condenar alguém que participou da reconstrução democrática do país. Lamento,
sobretudo, condenar um homem que, segundo todas as fontes confiáveis, leva uma
vida modesta e que jamais lucrou financeiramente com a política”.
Ai, ai… Não posso cortar a
fitinha do braço do ministro, mas posso lançar fora a que enfeita esse seu
pensamento torto. Não sei se ele pretende fazer também esse desagravo a José
Dirceu, o chefe da quadrilha, mas acho que não. Ocorre-me perguntar a que José
Genoino ele se referia: àquele que foi deputado federal ou àquele que
participou, ou quase, da guerrilha do Araguaia. O deputado ajudou a construir a
democracia como outros quaisquer — inclusive Delfim Netto, que assinou o AI-5,
hoje um lulista entusiasmado. Se, no entanto, falava do guerrilheiro, aí
aguardo um livro da excelência demonstrando como a luta armada e as ações
terroristas ajudaram a construir o estado de direito no Brasil. Ajudaram?
Alguém me evidencie, por
favor, pela via dos fatos, não com fitinhas de pensamento alternativo no braço,
como foi que aquele PCdoB, a VAR-Palmares (de Dilma) ou a ALN, para citar as
organizações extremistas mais conhecidas, colaboraram com o regime democrático.
Quero saber que heranças deixaram na legislação que orienta o estado de
direito. Com assalto a bancos? Com o confronto na selva? Com o assassinato de
122 inocentes? Como? É claro que eu sou um filho da mãe sem fitinha; é claro
que eu sou um reaça desprezível; é claro que etc, etc, etc. Mas me digam onde
estão os fatos, e eu já me darei por satisfeito. Construíram a democracia os
que tiveram a clareza de organizar a resistência pacífica e de criar
instituições, excelência! Os extremistas só criaram dificuldades adicionais.
Nem toda vítima deixa um legado benigno.
Há outro enfeite muito
especioso nesse pensamento. E daí que Genoino seja um homem pobre e jamais
tenha enriquecido na política? Foi para espalhar a sua honestidade pessoal e
fazer dela um norte conceitual da política que referendou aqueles empréstimos
mandraques intermediados por Marcos Valério, cuja fonte era, como restou
provado, dinheiro público? De novo lá vou eu recomendar, agora a Barroso, que
leia “Sussurros”, de Orlando Figes, sobre a vida cotidiana sob o tacão de
Stálin. Para si, como consumidor, o tirano sempre quis muito pouco. A sua
concupiscência era de outra natureza. Por baixo dessa fitinha, há uma outra,
ainda mais escondida: cometer crimes em benefício de um partido e de um projeto
de poder é mais desculpável, ou menos condenável, do que em benefício pessoal?
Numa linguagem mais crua: quem rouba para enriquecer é menos moral do que quem
rouba em nome de uma causa?
Ainda era pouco
A ladainha sobre Genoino preparava um discurso mais genérico — o que é sempre desaconselhável num juiz, a menos que esteja tratando de questões doutrinárias — sobre o sistema político brasileiro, que, segundo ele, induz o crime. Acusou parlamentares de transformar o Congresso num balcão de negócios. “Essa é a dura realidade: um modelo político em que o interesse público frequentemente precisa ser comprado“, afirmou. “Se não se alterarem, essa lógica da compra e venda irá continuar. Como água torrencial que corre, a corrupção encontrará seus caminhos”, metaforizou o fã de Taiguara.
A ladainha sobre Genoino preparava um discurso mais genérico — o que é sempre desaconselhável num juiz, a menos que esteja tratando de questões doutrinárias — sobre o sistema político brasileiro, que, segundo ele, induz o crime. Acusou parlamentares de transformar o Congresso num balcão de negócios. “Essa é a dura realidade: um modelo político em que o interesse público frequentemente precisa ser comprado“, afirmou. “Se não se alterarem, essa lógica da compra e venda irá continuar. Como água torrencial que corre, a corrupção encontrará seus caminhos”, metaforizou o fã de Taiguara.
Esse é um discurso que fica
bem em outro palácio da Praça dos Três Poderes: o do Congresso. Ministros estão
no da Justiça para fazer valer as leis e a doutrina, não para ser os Catões de
plantão do processo político. E seguiu com seu cenário apocalíptico: “Loteamentos
de cargos públicos drenarem recursos para eleições; emendas orçamentárias que
beneficiam empresas de fachada que repassam verba para o bolso ou partido;
licitações superfaturadas, subfaturas ou cartelizadas; venda de penduricalhos
em medidas provisórias para atender a interesses que não se saem bem no debate
público”.
Parece duro e preciso, mas
também vejo aí uma generalização perigosa que, como numa peça de Gil Vicente,
confunde “Todo Mundo” com “Ninguém”. Se o sistema é corrupto e corrompe, os
corruptores e os corrompidos são mais vítimas passivas de algo muito maior do
que suas respectivas vontades do que protagonistas da lambança. Barroso já
havia me incomodado outro dia, quando misturou os crimes do mensalão com o
sujeito que leva seu cachorro para a praia. O PT chegou ao poder com a maior
base de apoio que teve um governo em períodos democráticos. Não corrompeu
porque precisasse. Corrompeu porque aquela engenharia era parte de um projeto
de poder.
Essas considerações de Barroso
buscam eliminar as particularidades do mensalão. Não se tratou apenas de drenar
recursos públicos para bolsos privados — e não que isso já não seja
extremamente grave. Tratou-se de uma tentativa de golpear as instituições. Não
sei por quê, ou sei, mas entendo esse discurso como uma defesa nem tão velada
do financiamento púbico de campanha — que, ele sim, teria o condão de jogar o
processo político brasileiro na clandestinidade.
O ministro foi além: “Precisamos
não de uma agenda política, mas de uma agenda patriótica para desfazer essa
armadilha histórica que nos manterá atrasado, girando em círculos, incapazes de
dar um salto moral para fora do pântano”. Bem, mudar o sistema político, como
disse, é coisa de que se deve cuidar em outro palácio. Já esse negócio de
“agenda patriótica” para “sair do pântano” é conversa de guru ou de ideólogo.
Não fomos nós que fizemos o mensalão, não, ministro! Foram eles! Evoque as
leis, a jurisprudência e os princípios para se ocupar dos casos que estão no
tribunal. Pensamentos heterodoxos, com fitinhas, terão de esperar a
aposentadoria. “Agenda patriótica” é coisa de palanque.
Encerro
Lembro que Barroso teve uma chance formidável de dar uma pequena contribuição para criar esse país mais moral, mas fez justamente o contrário. Com o seu voto — puxando o cordão, diga-se —, o Supremo decidiu que cabia à Câmara e ao Senado dar a última palavra sobre o mandato de parlamentares condenados em processos criminais.
Lembro que Barroso teve uma chance formidável de dar uma pequena contribuição para criar esse país mais moral, mas fez justamente o contrário. Com o seu voto — puxando o cordão, diga-se —, o Supremo decidiu que cabia à Câmara e ao Senado dar a última palavra sobre o mandato de parlamentares condenados em processos criminais.
O ministro lamentou ainda o
arrefecimento dos movimentos de rua e afirmou que os políticos já não estão
mais atentos às demandas populares: “Pior que tudo: o povo saiu da rua e já não
se fala mais em mudanças”. Não dá! É fitinha demais de heterodoxia num discurso
só. Que conversa é essa? Algumas reivindicações eram boas; outras, nem tanto, e
havia (e há) as francamente estúpidas. “Povo na rua” não é uma categoria de
pensamento, um bem em si mesmo — como evidenciaram os vários fascismos ao longo
da história.
É claro que a fitinha no braço
do ministro não me incomoda e é questão de gosto — como a música de Taiguara.
Mas esse discurso cheio de penduricalhos heterodoxos nem melhora a Justiça nem
melhora a política. Vira só um desabafo fora do lugar. De todo modo, o homem se
conhece mais pela obra do que pelo palavrório. O debate sobre os embargos
infringentes está chegando. E aí saberemos se o ministro aposta contra o
pântano ou a favor dele.
Título e Texto: Reinaldo Azevedo, 29-8-2013
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