O uso equivocado ou dúbio de
palavras não só dificulta a compreensão, como é potente fator de desorientação
da ação humana. Quanto pior conceitualizamos um evento, tanto menos somos
capazes de entender o que está acontecendo. Os juízos moral e político ficam
sem parâmetros, ziguezagueando ao sabor das conveniências ideológicas.
Um caso particularmente
relevante concerne ao modo como o dito "golpe" egípcio é avaliado e,
para além dele, como a diplomacia brasileira "compreende" o que vêm a
ser os "progressos" da América Latina em sua vertente socialista,
bolivariana. Ainda recentemente o Brasil sediou o Foro de São Paulo, entidade
esquerdista latino-americana que se caracteriza por seu apreço a toda política
liberticida, em nome - pasmem! - de uma nova "democracia". Eles
gostam mesmo é de uma "boa" ditadura. Os representantes ideológicos
do passado procuram travestir-se com um manto politicamente aceitável, para
enganar os incautos.
A propósito do juízo político
sobre os eventos no Egito, alguns analistas fizeram um uso muito curioso dos
conceitos de "democracia" e "liberalismo", como se lá
tivesse ocorrido uma colisão entre ambos. Mais comezinhamente, deveríamos dizer
que lá ocorreu um divórcio entre um resultado eleitoral e os que defendem
direitos e liberdades, que vinham sendo usurpados por um governo islamista.
Este foi sufocando as liberdades, impondo sua particular interpretação dos
valores islâmicos, os defendidos pela Irmandade Muçulmana. Convém não esquecer
que essa mesma organização religiosa foi a responsável pelo assassinato do
presidente egípcio Anuar Sadat, participou da fundação da Al-Qaeda e apoia o
terrorismo do Hamas na Faixa de Gaza. Aliás, o atual líder da Al-Qaeda é
egresso da mesma Irmandade Muçulmana. As credenciais "democratas"
desse "partido" são, portanto, de difícil aceitação!
Há um problema conceitual de
monta aqui envolvido. A democracia, assim entendida, viria a significar
exclusivamente a realização de eleições e a adesão incondicional aos eleitos,
como se daí em diante tivessem eles o "direito" de tudo fazer,
ficando a sociedade submetida ao seu arbítrio. A democracia seria mero
instrumento de conquista do poder, que uma vez garantido asseguraria a seus
detentores a prerrogativa de tudo decidir, sendo soberanos no sentido ilimitado
do termo. Nenhuma lei os limitaria, salvo a de fachada que eles mesmos se
outorgam. O próprio Poder Judiciário torna-se um mero joguete em suas mãos,
nada decidindo verdadeiramente, devendo subordinar-se aos ditames do Executivo.
Logo, os direitos individuais
são abolidos - valores burgueses, no dizer bolivariano; valores ocidentais,
para os islamistas. As liberdades são progressivamente sufocadas em nome desses
"outros" valores socialistas/islamistas, conforme o caso, com o
Estado vedando todos os poros por onde uma sociedade respira. Normalmente seus
alvos mais diretos são os grupos de mídia e imprensa, porque quem procura impor
seus valores e ideias tem como objetivo eliminar toda liberdade de expressão.
Não espanta, pois, que advoguem por uma "democratização dos meios de
comunicação", forma velada de controlar a mente das pessoas e, por
intermédio delas, a sociedade em geral. Ainda no Foro de São Paulo o presidente
da Bolívia, Evo Morales, julgou - na ausência de juízo que o caracteriza - que "sobra"
liberdade de imprensa na América Latina. Ou seja, o que "sobra" é o
que ainda não conseguiram eliminar. Teve a adesão dos "companheiros".
Se a democracia é definida
apenas em termos eleitorais, ela é reduzida a uma de suas condições, eliminando
todas as outras. E a alternância no poder termina por não se concretizar,
porque os que detêm as rédeas de comando da máquina do Estado eliminam tal
possibilidade. Medidas arbitrárias são tomadas contra os opositores, tratados
como se criminosos fossem. São comuns os processos contra os que se rebelam
contra essa situação, pois tidos como inimigos a serem aniquilados.
A liberdade de imprensa,
condição fundamental de toda sociedade livre, vê-se afrontada por restrições
crescentes, como na Venezuela, onde empresas são fechadas ou vendidas a
"empresários" amigos. Observe-se, nesse sentido, a nova lei de
controle da imprensa e dos meios de comunicação, recém-aprovada no Equador:
doravante eles serão submetidos ao governo, que passará a agir por intermédio
de "censores legais".
Nos países bolivarianos a
"democracia" está sendo instrumentalizada para a implementação de seu
projeto socialista, destroçando as liberdades, destruindo as instituições,
tornando as oposições inviáveis, calando os meios de comunicação e implantando
a dominação do "líder máximo" e de seu partido. Embora ditos não
religiosos, sua ideologia se caracteriza por concepções teológico-políticas. No
caso do presidente Nicolás Maduro não lhe falta nem sua comunicação espiritual
com o ex-protoditador Hugo Chávez, que "fala" com ele através de uma
"pomba". É um homem abençoado, particularmente bem-aventurado!
Acrescentem-se as restrições
infligidas pelos que buscam impor normas religiosas ao conjunto da população,
pelo controle absoluto dos costumes, atingindo mulheres e homossexuais, para
que se tenha uma melhor visão de como a democracia é, dessa forma, pervertida.
Ou seja, os que dissociam democracia de liberalismo, dizendo defender aquela,
têm forte pendor liberticida. Mascaram-no, porém, ao atribuírem ao liberalismo
um viés não democrático.
Eis o contexto ideológico em
que se move a diplomacia brasileira, acatando todas as medidas liberticidas dos
países bolivarianos e islâmicos, conivente com seus desmandos de subversão da
democracia por meios democráticos. O País acaba se alinhando à escória mundial
em nome da democracia - e os mais afoitos, em nome da luta contra o
neoliberalismo. O Foro de São Paulo é a sua celebração!
Título e Texto: Denis Lerrer Rosenfield, Professor de
Filosofia na UFRGS, Estado de S. Paulo, 14-8-2013
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