domingo, 27 de outubro de 2013

Mais flagelados dos últimos dias do regime

Miguel Castelo Branco

Ontem cruzei-me com a procissão milenarista que se arrastou pelas ruas de Lisboa. Uns troikos de gente, umas centenas, logo inflamadas pelas rádios Moscovo de serviço, que avaliavam em "milhares de pessoas" tal romaria. Indignações, exaustos estribilhos, mantras, vitimização, muitos afectos; eis ao que se reduzem estas patuscadas errantes carregando certamente uma dimensão terapêutica que qualquer médico encartado aconselharia, mas que pouco acrescentam ao inexistente debate sobre as origens da crise, as culpas da crise e, sobretudo, soluções para a sua superação.

Apercebi-me - lobriguei entre os marchantes muitas caras conhecidas - que aquilo não é o 4º estado, gente esfomeada, açoitada pela penúria e pelo desespero. Fulanos e fulanas de meia-idade, casual Rua do Ouro, cada qual tomado de frenesim comunicacional enviando mensagens pelo twitter ou fotos para o facebook, muito sr. doutor das universidades, do funcionalismo público que raras vezes funcionou, reformados dos pináculos, meninas e meninoscos das universidades; uma "classe média" que nunca se interrogou se o tal português europeu, inventado por Cavaco, Guterres, Barroso e Sócrates, era coisa justa; gente que nunca perdeu pitada do abundantismo de obras públicas feitas para enriquecer as betoneiras; todos endividados pelo carrinho e casa fora de portas com que o regime foi enchendo vaidades agora estilhaçadas.

À frente, um figurão que foi em tempos recuados o meu pior professor - homem que nunca deu uma aula, conhecido entre os alunos por o baldas - de punho cerrado, epiglote tremelicante berrando contra a exploração, os "assassinos" e os "ladrões" que, dizem, estão no governo.

Decerto que estas errâncias gritantes nada acrescentam ou retiram ao que muito bem sabemos. Esta gente não tem a assisti-la uma só molécula argumentativa. Todo aquele ruído ambiente e decibéis não conseguem ocultar um absoluto vazio programático; pior, são um mau exemplo para aqueles que não vão a estas patuscadas - aqueles que nunca estiveram ligados a tríades de amiguismo, com ou sem avental, que nunca foram favorecidos num concurso público, que nunca se espreguiçaram na gelataria italiana, que não têm um amigo na direcção geral e que pode dar uma mãozinha -; estes burgueses com estridências de bunker em fim de regime sabem que o futuro se fará sem eles.
Título, Imagem e Texto: Miguel Castelo Branco, Combustões, 27-10-2013

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