Ontem cruzei-me com a procissão milenarista que se arrastou pelas ruas de Lisboa. Uns troikos de gente, umas centenas, logo inflamadas pelas rádios Moscovo de serviço, que avaliavam em "milhares de pessoas" tal romaria. Indignações, exaustos estribilhos, mantras, vitimização, muitos afectos; eis ao que se reduzem estas patuscadas errantes carregando certamente uma dimensão terapêutica que qualquer médico encartado aconselharia, mas que pouco acrescentam ao inexistente debate sobre as origens da crise, as culpas da crise e, sobretudo, soluções para a sua superação.
Apercebi-me - lobriguei entre
os marchantes muitas caras conhecidas - que aquilo não é o 4º estado, gente
esfomeada, açoitada pela penúria e pelo desespero. Fulanos e fulanas de
meia-idade, casual Rua do Ouro, cada qual tomado de frenesim comunicacional
enviando mensagens pelo twitter ou fotos para o facebook, muito sr. doutor das
universidades, do funcionalismo público que raras vezes funcionou, reformados
dos pináculos, meninas e meninoscos das universidades; uma "classe
média" que nunca se interrogou se o tal português europeu, inventado por
Cavaco, Guterres, Barroso e Sócrates, era coisa justa; gente que nunca perdeu
pitada do abundantismo de obras públicas feitas para enriquecer as betoneiras;
todos endividados pelo carrinho e casa fora de portas com que o regime foi
enchendo vaidades agora estilhaçadas.
À frente, um figurão que foi
em tempos recuados o meu pior professor - homem que nunca deu uma aula,
conhecido entre os alunos por o baldas - de punho cerrado, epiglote
tremelicante berrando contra a exploração, os "assassinos" e os
"ladrões" que, dizem, estão no governo.
Decerto que estas errâncias
gritantes nada acrescentam ou retiram ao que muito bem sabemos. Esta gente não
tem a assisti-la uma só molécula argumentativa. Todo aquele ruído ambiente e
decibéis não conseguem ocultar um absoluto vazio programático; pior, são um mau
exemplo para aqueles que não vão a estas patuscadas - aqueles que nunca
estiveram ligados a tríades de amiguismo, com ou sem avental, que nunca foram
favorecidos num concurso público, que nunca se espreguiçaram na gelataria
italiana, que não têm um amigo na direcção geral e que pode dar uma mãozinha -;
estes burgueses com estridências de bunker em fim de regime sabem que o futuro
se fará sem eles.
Título, Imagem e Texto: Miguel Castelo Branco, Combustões,
27-10-2013
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