Um dos grandes mistérios da situação portuguesa é que inúmeros
dirigentes e intelectuais antecipam e incitam à revolta e ao tumulto social
enquanto o País permanece sereno e ordeiro. Ambos os factos são estranhos.
Como os analistas mostram razões ponderosas, o povo deve saber algo que eles
ignoram. Três aspectos saltam à vista.
Primeiro, ao longo de duas
décadas, especialistas e organizações avisaram que Portugal seguia uma
trajectória insustentável que iria acabar mal. Banco de Portugal, OCDE,
Comissão europeia, FMI e muitos cientistas anunciavam crescentemente a
tempestade iminente. Ninguém podia dizer a data, a sequência ou os contornos,
mas a linha geral era irredutível. Por isso soam a oco as acusações que se
dirigem aos governantes actuais. Eles
são a comissão liquidatária dos erros dos antecessores. Espanta que entre
os críticos mais activos estejam alguns desses.
Embebedado 20 anos pelo
dinheiro fácil do Tratado de Maastrich, Portugal chegou à borda do abismo e
precisa de inverter hábitos recentes para cortar despesas e repor o equilíbrio.
Isto todos entendem. A falácia básica de inúmeros comentadores, dos cafés à
televisão é: "Quem viveu acima das posses foram ricos e poderosos, por que
razão devo eu suportar os custos do esbanjamento alheio?" Felizmente, o
povo, que não esqueceu como vivia antes e como a vida mudou com a dívida, entende
a mentira por detrás da queixa.
Dinheiro fácil não foi só de
ricos. Não havia senão endinheirados entre os utentes dos inúmeros serviços
públicos com défice operacional, dos transportes e saneamento à saúde e
educação? Seriam os múltiplos centros comerciais, onde prosperavam lojas
inacreditáveis, apenas frequentados por abastados? Eram só poderosos a encher
os inúmeros restaurantes, pastelarias e cafés que substituíam os antigos
farnéis? Os pavilhões polidesportivos, auto-estradas, casas da cultura, parques
industriais e tantas infra-estruturas novinhas, que brotaram por todo o lado,
só se destinavam às elites?
Apesar das atoardas dos
sábios, os portugueses entendem bem o longo delírio colectivo, onde todos
obtivemos ganhos excelentes, pagos com dívida externa que agora temos de
liquidar. O processo é difícil porque, depois de as termos, essas exigências
ficam indispensáveis e inalienáveis. Mas vivemos felizes sem elas durante
gerações.
É verdade que também houve
erros e crimes, que devem ser punidos, e nem sempre são. Muitas vergonhas, como
o BPN, continuam isentas. Também agora, neste difícil ajustamento, ocorrem
novos lapsos e abusos. Mas é importante entender que tudo isso não chega para
explicar um problema deste tamanho, só atingível com a participação de todo o
País. Dizê-lo gera sempre a acusação injusta de desculpar os corruptos e
incompetentes que nos meteram no buraco. Mas isso é tolice. Não se deseja
aliviar culpados mas promover a indispensável solidariedade social no
sofrimento. Não só porque realmente todos aproveitámos da longa festa, mas
também porque a raiva é sempre má conselheira.
A terceira coisa que a
população entende bem e tantos sábios teimam em ocultar é que revolta e repúdio
à troika e dívida aumentariam a austeridade, não a reduziriam. É preciso
equilibrar as contas e os milhões da ajuda permitem aliviar e adiar esses
cortes que, mesmo assim, são pesadíssimos. Seriam bem piores sem apoio. Além
disso, a única hipótese de o País voltar ao normal é reganhar a credibilidade e
a honestidade de bom pagador.
Nem as alternativas míticas de
crescimento que tantos inventam nem a revolta que levianamente insistem em
antecipar resolveriam a questão. A escolha actual é entre um caminho duro e
exigente, com aperto e mudança de vida, para voltarmos ao desafogo, ou o
estatuto de pária internacional, aparentemente aliviado da dívida, mas deixando
de ser país respeitável. Além de continuar a apertar o cinto porque, afinal,
até esquecendo os juros, o Estado ainda gasta mais do que tem.
É espantoso que o povo entenda
isto suportando serenamente os cortes. Mas ainda mais do que os sábios, não.
Título e Texto: João César das Neves, Diário de Notícias, 28-10-2013
Grifos: JP
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