A notícia fez capa do PÚBLICO
este fim-de-semana:
Lá dentro, com aquele
linguarejar politicamente correcto que faz com que ler o PÚBLICO seja também
participar numa performance activista das causas presentes e futuras,
conhecidas e por conhecer, a senhora em causa é designada como
"trabalhadora do sexo", designação em si mesma contraditória pois não
só não me parece que se possa designar a prostituição como trabalho como também
não entendo como tendo sido o sexo banido das nossas pessoas - agora só há
género! - há-de a senhora ser trabalhadora do sexo e não do género. Mas
reflexões linguísticas à parte voltemos à senhora que pede uma indemnização de
um milhão de euros à Santa Casa por "publicidade enganosa e ausência de
política de jogo responsável".
Presumo que se nos locais onde
a senhora em causa compra a raspadinha alguém tivesse tido a infausta ideia de
negar vender-lhe os respectivos cupões hoje não faltariam títulos como:
"Preconceito leva instituição católica a recusar vender raspadinha a
trabalhadora do sexo"; "Católicos indignados com Santa Casa apelam a
Papa Francisco para que ponha fim à ligação entre Nossa Senhora e os
discriminatórios jogos de fortuna e azar. A criação de uma raspadinha que dá
sempre prémios a azarados é uma absoluta urgência social.";
"Advogados vão pedir inconstitucionalidade do OE para 2014 pois este
consagra a exclusão daqueles que fogem ao fisco da Lotaria que o ministério das
Finanças vai lançar entre os contribuintes, situação que a par da recente falta
de equidade na venda da raspadinha pela Santa Casa a uma cidadã, faz com que a
venda de jogo não esteja conforme à Constituição". E certamente que a
Wikileaks revelaria que entre as raspadinhas que esta mulher foi impedida de
comprar se encontravam raspadinhas premiadas. Em conclusão, infelizmente para a
carteira da compradora e felizmente para nós mediaticamente falando, ninguém
impediu esta senhora de comprar raspadinha e consequentemente temos um pedido
de indemnização por a deixarem comprar livremente a dita raspadinha.
Este tipo de argumentário, em
que alguém que praticou um determinado acto transfere para outros a
responsabilidade por aquilo que fez, vai ganhado presença nesse espaço de
justiça imediata que são os jornais. Há até quem cometa actos bem mais graves
que os desta senhora - que em boa verdade só a ela parecem prejudicar - e que
constroem a sua defesa exactamente através dessa transferência de
responsabilidades. Entre os mais recentes tenho um interesse pessoal (gerado já
perceberão porquê por uma parede cá de casa onde um Modigliani ficava a matar)
por um grupo de cidadãos romenos que furtou vários quadros de Picasso, Gaugin e
Monet de um centro de arte em Roterdão, na Holanda e que, confessando tranquilamente
o roubo, acusa agora esse mesmo centro artístico de ser o responsável por esse
acto. Alegam os assaltantes que o roubo foi muito fácil e portanto que o será
culpado o museu. Culpado de quê? De negligência e falta de segurança. Na hora
em que escrevo só não se sabe se a mãezinha de um dos ladrões-vítima vai
processar a empresa fabricante dos fósforos por lhe ter fornecido os meios para
queimar várias das obras roubadas pelo filho ou se opta por transferir a culpa
para o conceito de exposição em si mesma: afinal quando se expõe um objecto que
é inacessível à maioria dos mortais atiça-se-lhe a tentação e pegar nele e
levá-lo para casa - ou para a lareira - não é um roubo mas sim uma irreprimível
forma de partilha da beleza do mundo. Por cá também já tivemos um caso similar.
Claro, como somos um país pobre não havia de ser por causa dos amarelos e dos
azuis de um quadro de Gaugin mas simplesmente por causa das moedinhas
reluzentes na caixa registadora de um café que um nosso concidadão resolveu furtar.
Impedido de concretizar esse seu intento pelo dono do café processou-o.
Goste-se ou não ao quotidiano chega agora esta forma de proceder e argumentar
já há muito começou na política onde há mesmo quem viva disso. Assim este
fim-de-semana tivemos mais manifestações e declarações contra a austeridade
que, dizem, nos é imposta pela ‘troika'. Claro que nós não temos nada a ver com
a austeridade. Nós vivíamos num país onde tudo ia bem: novos aeroportos; vias
rápidas; computadores; espaços polivalentes; parcerias... a nada resistíamos.
Éramos um país raspadinha.
Naturalmente ao
endividarmo-nos impusemos a nós mesmos a austeridade que hoje temos e a muito
mais severa que os nossos filhos vão conhecer. E agora aqueles mesmos que mais
defenderam esse endividamento e chamavam tremendistas, pessimistas e
obscurantistas a todos aqueles que questionavam o acerto de tanto gasto vêm
dizer que a culpa não foi de quem endividou o país para lá do razoável mas sim
de quem nos emprestou e empresta dinheiro e portanto gritam indignados
"Que se lixe a troika". Mas o pior nem é isto que já é hábito. O pior
é que amanhã eles voltarão a fazer o mesmo: defender mais despesa e mandar
lixar aqueles que aqui puseram dinheiro quando, como explicou limpidamente José
Sócrates "Já ninguém lá fora dava nada por nós". E quando cá dentro o
país raspava, raspava nos projectos que iam dar isto e aquilo e não deram nada,
a ver se nos saía um prémio. Pelo menos uma vez. E se não sai a culpa é de
Nossa Senhora, da Santa Casa ou da ‘troika' que no caso vai dar ao mesmo.
Título e Texto: Helena Matos, Diário Econômico, 29-10-2013
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