Ciro Barros
A reportagem da Pública
procurou os ativistas que articularam a primeira manifestação do ano contra a
Copa; encontrou um grupo heterogêneo e determinado a deter o Mundial à base de
protestos – sem “atos violentos”
O cenário é um centro
acadêmico de uma universidade na zona oeste de São Paulo, num início de noite
de um final de janeiro surpreendentemente seco. Sentadas em roda estão cerca de
20 pessoas. Enquanto a reunião não começa, as pessoas conversam em voz baixa,
fazendo críticas à polícia, à Copa, ao governo federal, ao governo do Estado de
São Paulo. O grupo é heterogêneo: homens mais velhos, adolescentes de ambos os
sexos, mulheres, trabalhadores, estudantes. Em comum, eles têm o fato de
pertencer a movimentos sociais – dos mais tradicionais, experientes em
protestos de rua, aos mais recentes, que ganharam notoriedade a partir da onda
de manifestações de junho do ano passado.
Eles estão ali para organizar
o segundo ato do ano sob um lema polêmico: “Se não tiver direitos, não vai ter
Copa”. O primeiro ocorreu no dia 25 de janeiro.
Nas redes sociais, as quatro
últimas palavras do lema do grupo causaram furor nesse início de ano, embora o
“Não Vai Ter Copa” tenha surgido nas
ruas, em junho, durante algumas manifestações. Também foi agora que o PT e o
governo federal reagiram nas redes sociais, preocupados com a possibilidade de
que as manifestações empanem o brilho da Copa no Brasil em ano de eleições –
e tenham o mesmo efeito devastador de popularidade que a presidenta Dilma
(como todos os governantes) enfrentou em junho do ano passado.
No domingo, dia 12 de janeiro,
a 13 dias da primeira manifestação chamada pelo coletivo, a reação do PT veio
em um post na página oficial do partido no Facebook: “Tá combinado. Uma boa
semana para todos que torcem pelo Brasil”. Acompanhada da frase, havia uma foto
com a hashtag #VaiterCopa. Na página
oficial da presidenta Dilma, o mesmo tom: “LÍQUIDO E CERTO. Uma boa semana para
todos que torcem pelo Brasil” e mais uma vez uma foto com a mesma hashtag.
Hoje, a hashtag usada pelo governo e o PT é #CopadasCopas, o mote oficial.
Nos blogs e redes sociais,
houve quem tratasse o movimento como “terrorista” e “caso de polícia”. Críticas
mais moderadas afirmam que os protestos da Copa, se tivessem o mesmo efeito
devastador na popularidade da presidenta Dilma, estariam abrindo caminho para
os partidos de direita.
Mas afinal, o que é esse novo
movimento? O que pretende? Como eles responderiam às críticas das quais têm
sido alvo? Foram essas perguntas que me levaram àquela reunião.
No dia 10 de dezembro do ano
passado, Dia Internacional dos Direitos Humanos, foi lançado um manifesto do
movimento com o título “Se não tiver
direitos, não vai ter Copa”. “(…) Junho de 2013 foi só o começo! As
pessoas, os movimentos e os coletivos indignados que querem transformar a
realidade afirmam através das diversas lutas que sem a consolidação dos
direitos sociais (saúde, educação, moradia, transporte e tantos outros) não há
possibilidade do povo brasileiro admitir megaeventos como a Copa do Mundo ou as
Olimpíadas. Isso significa que as palavras de ordem no combate a esses governos
que só servem às empresas e ao lucro devem ser: ‘Se não tiver direitos, não vai ter Copa!’”, dizia um trecho do
manifesto. E seguia adiante: “Nossa proposta é barrar a Copa! Mostrar nacionalmente
e internacionalmente que o poder popular não quer a Copa!”. Depois, o manifesto
se referia às manifestações contra o aumento da tarifa de transportes que
detonaram a onda de protestos em junho: “Os dirigentes políticos disseram que
era impossível atender a pauta das manifestações pela revogação do aumento,
entretanto o poder popular nas ruas nos mostrou que realidades impossíveis
podem ser transformadas, reivindicadas e conquistadas pelo povo. E mesmo assim
dirão: ‘mas isso é impossível!’ Então nós diremos: ‘o impossível acontece!’”.
Cinco movimentos assinam o
manifesto. O mais conhecido deles talvez seja o Movimento Passe Livre (MPL), um
dos principais catalisadores dos protestos políticos em junho com a pauta
do modelo de transporte público. Os outros são o Fórum Popular de Saúde do
Estado de São Paulo, articulação que reúne diversos coletivos em defesa das
melhorias na saúde pública; o Coletivo Autônomo dos Trabalhadores Sociais, que
reúne, principalmente, assistentes sociais que atuam em São Paulo; o Periferia
Ativa, fundado por comunidades da zona sul e da região metropolitana da capital
paulista; e o Comitê Contra o Genocídio da População Preta, Pobre e Periférica,
que combate a violência da polícia e dos grupos de extermínio ligados a ela que
atuam nas periferias.
“NÃO SOU FILIADO A NADA”
Os focos das organizações,
como se vê, são diferentes, mas o que as une é a luta pelos direitos humanos da
população excluída, que consideram ainda mais ameaçados pela realização da
Copa. Sérgio Lima, do Fórum Popular de Saúde, descreve assim os integrantes do
movimento: “É um pessoal que já participou de muita luta, pessoal de movimento
social mesmo, que tá cansado de gabinete e tudo mais. Eu sou um caso que
postulei muito tempo luta de gabinete.
Mas hoje não sou filiado a
nada”, afirma. E explica os objetivos do grupo: “A meu ver, é dizer que a gente
não precisava da Copa nesse momento, diante de tantas mazelas em transporte,
educação, saúde. Acredito que é nesse sentido”.
Quando lembro as críticas,
expressas principalmente nas redes sociais, de que o “Não vai ter Copa” serve
aos partidos de direita, ele dá risada. Conta que, inclusive, já foi filiado ao
PT. “Eles sempre dizem isso”, desdenha.
Pergunto então se eles
realmente pretendem barrar a Copa, e de que maneira. “É um objetivo sim. De
enfrentamento mesmo, a gente sabe que é uma luta desleal e cruel, mas a gente
tem isso como pauta, sim. Queremos ganhar a massa, ganhar corpo e fazer o
enfrentamento com os protestos nas ruas. Não queremos nenhum ato violento, nem
se cogita isso. Queremos barrar com os protestos mesmo”, afirma.
ANTICAPITALISTAS
Além das organizações citadas,
o movimento também atraiu ativistas que militavam em partidos políticos à
esquerda do PT, como o PSTU e o PSOL. O movimento Juntos!, por exemplo, que
surgiu no início de 2011 a partir da juventude do PSOL, também forma a base de
apoio.
“A gente entende a Copa do
Mundo como parte de um aspecto crítico do crescimento capitalista. Com o
crescimento, ao invés de termos investimentos nos setores públicos, em saúde,
educação, transporte, moradia, o que temos é um processo de subserviência ao
projeto tradicional de acumulação, que é esse megaevento comandado por uma
entidade absolutamente corrupta como a Fifa. O único objetivo da Copa é
enriquecer os parceiros comerciais da Fifa e as grandes empresas no Brasil. E
isso tem sido feito com a produção de cidades de exceção”, afirma Maurício
Costa Carvalho, do Juntos!.
Para Maurício, os protestos de
agora fazem parte de uma sequência de manifestações que vem ocorrendo nos
últimos anos no mundo todo – dos indignados na Espanha ao Occupy Wall Street
nos Estados Unidos. Foram esses protestos, ele diz, que motivaram a criação do
Juntos!: “Todos os governantes tiveram a sua popularidade bastante desgastada depois
das jornadas de junho. Isso mostra que não é um problema de um partido ou de
outro, só. É um problema da estrutura da velha política partidária no país. As
manifestações mostraram que é necessário ter mudanças estruturais. E essas
mudanças passam por ter uma política que é completamente distinta dessa
política que vem sendo feita. É necessário que se ouça a voz das ruas e que a
política não se resuma a passar um cheque em branco a um candidato a cada dois
anos”.
Pergunto se a ligação do
Juntos! com o PSOL, que vai lançar o senador amapaense Randolfe Rodrigues como
candidato à presidência neste ano, compromete a independência partidária do
grupo. “O Juntos! é um grupo que têm militantes do PSOL, mas que tem muitos
militantes que não são do PSOL, tem seus fóruns próprios, seus próprios grupos
de discussão. Existem militantes do PSOL que participam de vários grupos
diferentes. Então não tem nada ligado à estrutura do PSOL”, diz.
CIBERATIVISMO
Desde a redação do manifesto,
a articulação se define como horizontal, sem que ninguém chame para si o papel
de líder ou organizador do movimento. Todos participam da discussão das pautas
e estratégias dos atos. E o coletivo continua a atrair novos atores, como
integrantes do Sindicato de Metroviários de São Paulo, membros de movimentos de
moradia como o Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto (MTST), representantes do
movimento estudantil, do GAPP (Grupo de Apoio ao Protesto Popular), um coletivo
que presta primeiros socorros aos manifestantes atingidos, entre outros. Um caldo
bem heterogêneo, basicamente formado por movimentos urbanos de esquerda com
pautas clássicas (moradia, saúde, educação, transporte…) e outros de
ciberativismo, como demonstram as páginas do Facebook “Contra a Copa 2014” e
“Operation World Cup”, do grupo Anonymous.
“Houve uma junção [com os
grupos de ciberativismo]. Tinha uma rapaziada que já tinha criado um evento no
Facebook chamando protestos contra a Copa e a gente se articulou com eles e
chegamos com uma pauta mais concreta”, conta Sérgio Lima do Fórum Popular.
Segundo os ativistas ouvidos
pela reportagem da Pública, os grupos que atuam online têm duas
funções básicas: ajudar a divulgar os protestos e veicular a versão dos
manifestantes para episódios controversos. O ato do dia 25 de janeiro, por exemplo,
era focado em São Paulo, já que tinha como gancho o aniversário da capital
paulista. Mas a divulgação e articulação nas redes acabou multiplicando os
protestos em outras cidades do país.
O grupo online também se
articulou para rebater as informações de que adeptos do Black Bloc teriam
incendiado o Fusca do serralheiro Itamar Santos, de 55 anos. As primeiras
informações da imprensa davam conta de que o carro tinha sido incendiado pelos
adeptos da tática, mas a página “Contra a Copa 2014” divulgou um vídeo, três
dias depois, mostrando imagens de Itamar tentando passar com o Fusca por cima
de um colchão em chamas, que ficou preso no carro e o incendiou.
Há muitos membros de
movimentos sociais, porém, que associam o Anonymous e outros grupos
ciberativistas a setores conservadores, até mesmo à própria polícia. Eles
se declaram apartidários.
BANDEIRAS CLÁSSICAS
“Se tem alguém de
direita ali, está muito bem escondido”, afirma categoricamente Sérgio Lima.
Maurício Carvalho, do Juntos!, concorda: “Nós estamos elaborando uma lista de
reivindicações de direitos básicos de algumas bandeiras que estão envolvidas em
seis eixos: saúde, educação, transporte, moradia, contra a ingerência da Fifa e
contra a repressão. E todas essas bandeiras são históricas que a esquerda e os
movimentos sociais construíram”.
Outro membro da articulação é
o ativista Vitor Araújo, o “Vitinho”, que perdeu um olho em uma manifestação do
último dia 7 de setembro, em São Paulo, enquanto cobria a manifestação pelo
Basta TV, um canal independente. Vitor afirma que perdeu o olho depois de uma
bomba da Polícia Militar estourar perto do seu rosto – episódio que o motivou a
seguir nas ruas. “Nosso movimento é horizontal e não partidário, nem
ideológico. Existe muita discussão, muita gente com ideologia diferente, mas
temos um único cunho que é ‘Se não tiver direitos, não vai ter Copa’: direito à
saúde, à educação, à moradia, à segurança pública. São por esses méritos que
cada uma das pessoas luta por um objetivo final”, afirma.
A fala de Vitor parece
ilustrar a crise de representação política tão citada pelos sociólogos no
momento em que vivemos. Ele diz não acreditar nos métodos da política clássica,
apesar de não se opor à participação de ativistas que militam nos
partidos. “Nossa luta é por direitos básicos, que estão na
Constituição e não acontecem. Não tem vinculação a partidos, a ideologias”,
realça, acrescentando que também já fez manifestações contra o chamado
“Propinoduto Tucano” (denúncia de corrupção nos contratos do metrô e trens de
São Paulo) e que não há motivos partidários nas manifestações contra a Copa.
“É simples: havia um acordo,
que era o do governo montar toda uma estrutura em volta da Copa, dos estádios.
Isso não aconteceu e é por isso que a gente luta. São sete anos e eles não
cumpriram esse acordo”, explica.
Vitor também nega a presença
tanto de “pessoas assumidamente de direita” como de adeptos da tática Black
Bloc na concepção e organização dos movimentos contra a Copa. “Os protestos são
convocados na internet, nas redes sociais, são abertos. Eles veem e se
organizam para ir lá”, diz. Também diz entender a atitude Black Bloc como uma reação
à violência policial. “Posso te dizer, já fui em muita manifestação aqui em São
Paulo e quem começa a reprimir é sempre a PM”, afirma.
Vários protestos sob o lema
“Se não tiver direitos, não vai ter Copa” estão previstos para acontecer nesse
semestre. Cada protesto levantará a bandeira de um direito que, na visão dos
ativistas, é negado à população, ou então problemas concretos acarretados pela
Copa. No dia 22 de fevereiro está marcado um ato na Praça da República,
centro de São Paulo. O mote do protesto é a educação.
COM CAUTELA
A ANCOP (Articulação Nacional
dos Comitês Populares da Copa) apoia os atos realizados pelos coletivos, mas
não participa de sua articulação. Cada Comitê Popular em cada cidade-sede tem
independência para aderir ou não aos atos. “O lema ‘Não vai ter Copa’ veio das
ruas, das manifestações, não foi imposto por nenhum grupo político. A gente,
claro que aceita. Não temos a pretensão de ser vanguarda ou monopolizar a
resistência à Copa. Mas no entendimento que a gente tem discutido bastante, o
‘Não Vai Ter Copa’ é muito mais uma palavra de ordem do que um objetivo
concreto. Dentre os nossos objetivos não está não acontecer a Copa. Temos
objetivos concretos, como reparações às vítimas da Copa”, diz Marina Mattar, do
Comitê Popular de São Paulo.
“Dá para perceber que são
movimentos bem heterogêneos, tem de tudo nessa proposta. Ela vem com pouco
debate político e alguns comitês não conseguem contato com quem tá propondo,
organizando. Aqui em Porto Alegre a gente não conhece as pessoas que estão
propondo isso”, diz Claudia Favaro, do Comitê Popular de Porto Alegre. “Quando
chamaram o ato do dia 25, não foi conversado com o Bloco de Lutas pelo
Transporte Público e nem com o Comitê, que são os espaços onde os coletivos
estão organizados. Aqui a gente não tem essa posição de que mobilização só se
chama pela internet. E existe uma preocupação por parte da esquerda em geral da
apropriação da pauta por setores mais conservadores. A gente se soma ao grito
de ‘Não vai ter Copa’ entendendo que é uma amarra na garganta de um povo que já
está oprimido há um tempo, mas ainda vemos com cautela”, diz ela.
“Em todos os debates que a
gente teve a gente acha até ruim que o debate fique polarizado entre ‘Vai ter
Copa’ e ‘Não Vai Ter Copa’. Fica então uma discussão superficial, a gente não
discute as violações. E o que a gente quer discutir são as violações”, opina
Renato Cosentino, do Comitê Popular do Rio de Janeiro. “Tanto as violações
diretas em decorrência da Copa como as de modelo de cidade que a Copa do Mundo
faz parte. É isso que a gente vem tentando dar destaque. Mas é claro que a
gente apoia o lema e as mobilizações contra a Copa”, completa.
Título, Imagens e Texto: Ciro Barros, Agência Pública, 17-02-2014
O blog Copa Pública é uma experiência de jornalismo
cidadão que mostra como a população brasileira tem sido afetada pelos
preparativos para a Copa de 2014 – e como está se organizando para não ficar de
fora.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Não publicamos comentários de anônimos/desconhecidos.
Por favor, se optar por "Anônimo", escreva o seu nome no final do comentário.
Não use CAIXA ALTA, (Não grite!), isto é, não escreva tudo em maiúsculas, escreva normalmente. Obrigado pela sua participação!
Volte sempre!
Abraços./-