quinta-feira, 24 de abril de 2014

Não foi para isto que fizemos o 25 de Abril

José Manuel Fernandes
Já chega. Ao fim de semanas e semanas a ouvir repetir por todo o lado inanidades sobre os “valores de Abril”, o “destino de Abril” ou a “traição ao 25 de Abril”, ao fim de meses a anunciarem-me que vinha aí o autoritarismo, se é que já não tinha chegado, ou a preverem o regresso de um salazarismo sem Salazar, hoje achei que era demais ver o António-Pedro Vasconcelos, na capa do i, a proclamar que a “democracia faliu”.


Mas “faliu” porquê? Deixou de haver liberdade nos jornais e nas televisões? Fecharam a Internet ou o twitter? Algum militar entrou de pistola em punho pela Assembleia dentro? Proibiram as eleições marcadas para o próximo mês de Maio? Prenderam alguém por delito de opinião ou actividades subversivas? Falsificaram as eleições?

Aparentemente nada disso sucedeu. Apenas sucedeu que APV acha que a democracia não dá resposta aos problemas das pessoas. E não dá por quê? Porque ele odeia o Governo e detesta o PS de Seguro.

Ou seja, APV está mais ou menos como todo o coro que temos ouvido por estas semanas. Se fosse a menina Guidinha escreveria uma redacção mais ou menos assim: “Eu gosto muito da democracia. Eu não gosto nada do que esta democracia me deu. Eu acho que isto não é democracia”. Se em vez de ser a menina Guidinha fosse antes um Vasco Lourenço substituiria a palavra “democracia” por “25 de Abril” e a redacção também estaria perfeita.

É pena vermos as comemorações do 40º aniversário da revolução que acabou com um regime autoritário e repressivo velho de 48 anos reduzidas a esta caricatura.

Não é de hoje, nem de ontem, a disputa sobre o significado do “25 de Abril”. O primeiro jornal em que trabalhei, está quase a fazer 38 anos (eu tinha na altura 19), chamava-se, não por acaso, “25 de Abril do Povo”, e representou uma fútil tentativa de prolongar o movimento otelista e aquilo que aquele grupo achava ser “o verdadeiro” 25 de Abril. Durou apenas três meses, pois nessa altura (1976) a revolução já tinha acabado. Mas como se verificou abundantemente nas últimas semanas, muitos dos revolucionários de então continuam a achar que havia qualquer coisa no seu muito especial e específico 25 de Abril que nunca foi cumprido, e se nessa época saltitavam de fábrica para fábrica, por estes dias andaram por mais bem confortáveis salas de conferência dando vazão à sua imensa nostalgia.

Nada me incomodaria nesta pequena indústria comemorativa não fosse esta tendência para confundirem democracia com a sua ideia específica do que deve ser o destino do povo, a sua eterna tendência para acharem qque a sua liberdade é melhor e mais pura do que a liberdade dos outros.

De facto uma das coisas que distingue as democracias dos regimes revolucionários é que as democracias são muito menos exaltantes. Mas muito mais realistas. As suas imperfeições são a sua força, já que aquilo que verdadeiramente as distingue não é nelas se escolher periodicamente um governo, é nelas se poder, pacificamente, correr com um governo de que não se gosta. São regimes de tentativa e erro, onde se podem corrigir trajetórias e onde existem mecanismos que limitam o poder das maiorias.

Eu sei que muitos revolucionários, mesmo quando acham que são genuinamente democratas, sofrem horrores sempre que o povo ignaro escolhe seguir por caminhos diferentes daqueles que eles prefeririam. Também sei que já não é nada mau que não sejam suficientemente revolucionários para acharem que podem, de cima para baixo, como líderes iluminados, imporem a sua vontade ao povo, qual modernos Robespierre. Mas lamento muito que andem por aí, no 40º aniversário do 25 de Abril, a desmerecer a democracia.
Já chega!
Título, Imagem e Texto: José Manuel Fernandes, “Blasfémias”, 24-04-2014

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