segunda-feira, 7 de abril de 2014

O mistério da fé

Alberto Gonçalves
Nunca percebi se Januário Torgal Ferreira diz o que diz porque realmente o pensa ou se as declarações da criatura ao longo dos anos compõem um imenso e rebuscado quadro cómico. Continuo sem perceber.

Esta semana, o ex-bispo das Forças Armadas (até o ofício que o celebrizou parece brincadeira: para que precisam as FA de um bispo? Para converter o inimigo? Para providenciar a extrema-unção às baixas?) prometeu celebrar o próximo 25 de Abril vestido de negro, o que em princípio não tem nada de extraordinário num sujeito que é, afinal de contas, um padre. Sucede que D. Januário não se fica por aqui e explica: o negrume no traje representa uma forma de protesto contra o, cito, "neoliberalismo" do Governo, cujo objectivo consiste em, volto a citar, fabricar escravos e regressar ao regime do Estado Novo. Para D. Januário, sempre críptico ou hilariante, isto terminará num "banho de sangue" de que ele não quer ser cúmplice (decerto imagina que a tropa existe para espalhar carícias).

Vamos por partes, se possível. D. Januário acredita mesmo que um governo que, por culpas próprias, alheias ou partilhadas, aumenta o peso fiscal, sobe a despesa pública e no fundo faz de tudo para que o Estado permaneça relativamente intacto é liberal, "neo" ou não? D. Januário faz sequer uma vaga ideia do significado de "liberal", vocábulo ou inclinação filosófica? Em qualquer dos casos, D. Januário acha que o liberalismo se confunde com as políticas do Estado Novo? D. Januário sabe quem foi e o que defendia Salazar? As alternativas risonhas que D. Januário propõe aos "escravos" criados pelas economias de mercado são aquelas em que estou a pensar? D. Januário considera emancipados os cidadãos dos regimes declaradamente avessos ao capitalismo? D. Januário possui informações privilegiadas acerca do "banho de sangue" que aí vem ou ainda nos encontramos no domínio da alucinação? O povo passou a D. Januário uma procuração para que o representasse? Se sim, ninguém me avisou.

Vão longe os tempos em que as indignações da Igreja se esgotavam no filme Pato com Laranja. Mas mantém-se a tendência de alguns sacerdotes para opinar sobre o que, por opção de carreira, não compreendem. Pior ainda, a tendência espalhou-se por crentes ligeiros, laicos, agnósticos e ateus intransigentes, todos unidos sob o lendário manifesto do 70, que sob a forma de petição já chegou aos 25 mil e nem por isso alcançou um pedacinho de pertinência.

A reclamada "reestruturação" da dívida, ou seja, a possibilidade de o caloteiro ditar as condições do calote, levanta sérias interrogações acerca da lucidez dos respectivos preponentes e seguidores - e esta é a hipótese simpática. A hipótese desagradável é o discurso da "reestruturação" ser uma deliberada e desastrada intrujice, embrulhada no género de delírios repetidos por D. Januário de modo a evangelizar pasmados. No fundo, trata-se da diferença entre a fé e a má-fé, e na matéria em questão é um mistério haver gente alheia aos interesses das "elites" que adere à primeira ou se deixa enganar pela segunda. Por outras palavras, não admira que um país que leva, por exemplo, D. Januário a sério acabe no estado - e no Estado - actual. E se um Governo abaixo de sofrível beneficia de uma contestação assim, o País não.
Título e Texto: Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 07-04-2014

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