Estamos à
mercê de acontecimentos que não estão em nossas mãos. Mas, dentro desta
fatalidade que nos é imposta, o homem, pela sua decisão, quer tentar, por sua
parte, viver racionalmente, quer, mediante a razão, experimentar autonomia e
sentido.”
Karl Jaspers
Antônio Xavier Teles
Que é a razão?
A razão consiste numa
exigência sui generis de explicação.
É aquela exigência de fundo consciente ou inconsciente que procura reduzir as
coisas dispersas a uma ordem, a uma forma qualquer de ordenação intelegível. A
razão quebra a cadeia dos fatos singulares e individuais para estabelecer uma
relação entre eles, uma unidade que dinamiza e cria um todo onde antes só havia
partes. Por isso, o fato isolado, irredutível a outras ligações, se mostra
absurdo.
Função da razão
A função da razão é
explicativa. Sua finalidade última é a busca de uma explicação verdadeira. A
razão não é uma exigência qualquer de explicação, que, uma vez obtida, torna-se
satisfeita e estática. Sua meta é a verdade, isto é, a essência última da
coisa. Daí esta sua insatisfação que nunca a deixa definitivamente contente com
os resultados, porque a verdade (última) não é presa fácil. Aquilo que as
coisas são realmente está muito distante daquilo que parece ser para nós.
O que melhor caracteriza a
razão é precisamente esta instabilidade crítica que a impele à análise bem como
à busca de conhecimento.
É por isso que o homem, ser
racional, nunca deixa de pensar. Procura sempre conhecer, deseja ouvir e
observar, experimenta para poder melhor descobrir a trama das coisas. A razão
apresenta-se como uma tendência para a unidade, porque somente numa visão mais
ampla as partes se tornam mais compreensíveis.
Os progressos da razão
A razão como força
explicativa, que procura reduzir o acontecer caótico e os fenômenos dispersos a
uma unidade cada vez mais perfeita, sofreu uma evolução.
Primeiramente, para obter uma
ordem qualquer dentro de um mundo misterioso e aterrador, o homem primitivo criou uma explicação mítica do mesmo. Introduziu
divindades e forças ocultas no mundo e passou a adorá-las. Foi o estado teológico ou mítico da razão.
Esta, porém, continuou a
progredir, chegando à fase seguinte. Nesta fase, impelida pela crítica e pelo
fato de estar sempre disposta a criar, de nunca repousar sobre seus louros,
procurou princípios gerais como fonte explicativa dos fatos. Apelou para ideias gerais, como por
exemplo: geração espontânea, atração, tendência ao repouso etc. Com princípios
desta natureza, era possível explicar os fatos, sem recorrer às forças divinas ocultas.
A esta fase Augusto Comte chamava de
“metafísica”. Empregou prioncípios gerais, mesmo arbitrariamente, para
explicar as coisas. É já um passo à frente da racionalidade.
O terceiro e último estado da
racionalidade é “o positivo ou científico”. Nenhuma explicação é científica se
não for devidamente provada e comprovada. Observa-se, testa-se, prova-se,
contraprova-se, submete-se a cálculo e no fim se diz: “A verdade até agora
parece ser esta.Se surgirem alguns fatos que a informem, deve-se continuar a
pesquisar”.
A razão científica ou
Filosofia tem atualmente uma abertura ilimitada para as coisas e para a
verdade.
Quando surgiu a razão?
Na criança, a Razão se mostra,
de forma clara, por volta dos quatro ou cinco anos, quando a criança não se
cansa de perguntar o porquê de cada coisa. Depois desta fase espontânea, pode
exercitar a razão por força de imperativos interiores, pode se sentir convocada
a explicar apenas as coisas ao seu redor, a fim de fornecer um significado à
sua vida, ou pode decidir-se a criar e buscar uma explicação que proporcione
unidade a todas as coisas. Esta seria uma razão filosófica. Buscar esta
explicação final e procurá-la, com intensidade, é o que se pode chamar de razão
filosófica.
Adversários da Razão
A Razão parece não ter
adversário algum, enquanto almeja tornar claro tudo o que existe, enquanto
deseja trazer tudo à sua linguagem e incluí-lo em sua explicação. Contudo, isto
não acontece, como nos adverte Karl
Jaspers no seu livro Razão e anti-razão em nosso tempo.
Há também uma anti-razão, um
espírito de inobjetividade, de arbitrariedade, de cegueira, de parti pris, de sofismas, que procura,
por interesses mesquinhos, por vantagens hedonísticas, destruir, ocultar a pura
explicação, a verdade das coisas, a unidade clarificante do todo. Nesta luta,
muitas vezes a anti-razão vence a razão.
Alcântara Nogueira, no seu conceituado livro Ideias vivas e ideias mortas, nos faz lembrar esta verdade. Há
muitas ideias mortas pela anti-razão. As verdades,
contidas nas heresias, foram
sufocadas pelo fanatismo de outros dogmas. Os grandes meios de publicidade do
mundo atual a serviço de certos interesses escusos podem matar, nas
consciências, ímpetos da verdadeira razão, liquidando ânsias de libertação, ocultando
verdades claras, sofismando argumentos, criando mitos, tudo isto para ofuscar
no seu nascedouro aquelas verdades que iriam ofender a seus interesses.
A paixão e os interesses podem
impedir o exame reflexivo e desinteressado, necessários à percepção e à criação
da verdade explicativa que a razão deseja. Luta-se
contra a razão com técnicas modernas de exacerbação da vida emocional que, por
sua vez, bloqueia todo o campo da consciência, dopando racionalmente o
indivíduo.
Quando a verdade pura e
simples contraria grandes interesses, é condenada às vezes a morrer. Os meios
de divulgação, em uníssono, entram em campo para criar um estereótipo, isto é,
uma ideia emocional que a bloqueie. O indivíduo bloqueado passa a repelir tudo
o que não favorece o próprio modo de pensar.
A razão não tem medo das
mudanças em nenhum setor, quer intelectual, quer social etc. A verdade que
possuímos é sempre relativa, isto é, suscetível de mudar para o mais verdadeiro.
A anti-razão, ao contrário,
teme as mudanças, porque só lhe agrada o status
quo mantenedor dos seus interesses e de suas posições. Além disto, qualquer
agitação pode trazer luz às trevas e então sua nudez, a nudez de suas “verdades”, viria à tona.
Título e Texto: Antônio Xavier Teles, in “Introdução ao
Estudo de Filosofia”, páginas 196 a 199.
Digitação: JP
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