João Afonso Machado
Diz uma grossa fatia do
quotidiano, tratou-se de um gesto irreflectido, esse fatal momento do fim da
tarde em que o gato gemeu debaixo de um automóvel estacionado, claramente
pedindo lhe valessem. Uma breve troca de olhares, uma frase brevíssima -
levamo-lo? - e a resposta dada na atitude de quem chama já o bichano. E ele
veio prontamente. E, também prontamente, terão ido embora as estadias aqui e
ali, as férias, alguma salutar ausência de miados...
Mas não havia como não. Eram
as albinegras fomas da meiguice e da fome e do frio e do abandono. A total
entrega a uns desconhecidos, fosse lá o que a divindade dos gatos quisesse,
para pior não ia. Mais de 48 horas volvidas, banhado e perfumado, no seu
ripanço ao sol da janela, ainda não parou de comer. E sabe utilizar
perfeitamente o water-closed que lhe foi reservado. Ganhou brilho na pelagem,
os olhos desembaciaram. Mas ainda não perdeu a fraqueza das patas, uma quase
atrofia do peito. E pigarreia muito.
Por ora, nem sinais de
arrependimento ou tristeza, de parte a parte. É, decididamente, um personagem
de Dickens. Orfão, escorraçado, esfomeado, sem rumo nem futuro... Sujeito a
qualquer atropelo. E Oliver ou Twist, de sua graça de adopção, ainda não se
sabe bem.
A história não reclama a
bondade de Mr. Brownlow nem a cronometria de um século qualquer - a miséria
espalhou-se rapidamente no tempo, e no espaço também. Ao ponto de não ser
possivel afirmar todos os Fagins deste mundo não merecem subir as escadas do
patíbulo. Mesmo porque não disporiam de consciência que se lhes enforcasse...
E assim ficamos nós, e os
nossos irreflectidos gestos, a passar a ferro sobre o water-closed do Oliver ou Twist, ainda não se sabe bem...
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