sábado, 26 de julho de 2014

Azulzinho envergonhado, essa decadência

Jacinto Flecha


Surpreendeu-me agradavelmente a mensagem de um leitor sobre minha crônica “muito esclarecedora” (Brim cáqui – lona – blue jeans), onde qualifiquei jeans como azulzinho envergonhado. Mais agradável ainda, a indicação que ele me fez de um vídeo do Youtube:



Agradeço ao leitor pela mensagem e pela indicação desse vídeo, onde retratos feitos por grandes pintores mostram belíssimos exemplares das roupas que as senhoras usavam antigamente, nos séculos XVIII e XIX. Um verdadeiro desfile de moda antiga e de bom gosto, tendo como fundo musical o Capricho italiano, de Tchaikovsky. Pareceu-me muito acertada a ideia dessa associação visual-auditiva, e recomendo aos leitores que apreciem esse belo conjunto.

Vendo a beleza das roupas de antigamente, lamentei ainda mais a vulgaridade arrogante e ostensiva do jeans, uma decadência global que se renova e generaliza ao longo do tempo. Enquanto fazia essa comparação, tive o receio de alguns leitores avaliarem como idiossincrasia o meu repúdio ao azulzinho envergonhado. Se lhe ficou essa impressão, peço que releia minha crônica, pois o que lamentei e vergastei foi a indiscutível e lamentável decadência mundial nos trajes. Compare o jeans com as roupas que desfilam ao som do Capricho italiano, e encontrará muitos pontos em que a decadência não deixa margem a dúvidas.

Sintetizo a seguir alguns desses requintes de decadência.

Costuras — Em qualquer roupa, as costuras têm a função de prender umas partes de tecido nas outras. Só para isso elas serviam, tanto que boas costureiras e bons alfaiates procuravam ocultá-las. Neste item de perfeição se esmeravam os artífices, tornando-se tão mais conceituados quanto melhor fosse o resultado desse “disfarce” das costuras. Na indumentária jeans, é praticamente nula a possibilidade de obter belos contrastes por meio da costura, nada seria mais deprimente do que costurar ali tecidos de boa qualidade e ornamentos de belas cores. Qual a solução? Transformar costuras em ornatos. E as costuras sentiram-se tão à vontade, que resolveram destacar-se ainda mais, com linhas arrogantemente grossas, até de cores diferentes.

Rebites — Têm a finalidade de unir chapas ou outras peças de metal, como também de couro, e são excelentes para isso. Como o tecido de jeans é quase tão grosseiro quanto couro, até compreendo que eles sirvam para a função, mas eu nunca os imaginaria como enfeites de roupas. Os fabricantes da decadência imaginaram, e logo os rebites adquiriram status de ornamentos.

Desbotamento — Quando uma roupa vai se desbotando pelo uso, quem não se considere mendigo trata logo de substituí-la. Em tempos idos, as tinturarias refaziam a cor original ou a substituíam por outra, adquirindo a roupa o aspecto de nova. Não sei se o azulzinho envergonhado (será que a cor índigo é uma fusão de indigente com mendigo?) admite o trabalho de tintureiros. Mas o mundo decadente está ávido por qualquer decadência, e a palavra de ordem foi fabricar jeans pré-desbotados; ou seja, a roupa já é velha no primeiro dia de uso. Todos acharam isso normal, bom, moderno, e o mundo decadente aderiu a mais essa decadência.

Manchas — Além do desbotamento, manchas indeléveis podem inutilizar uma roupa nova ou pouco usada. Os decadentes nem ligam se isso acontece com o jeans, e até admitem manchas em roupa nova, como se fossem enfeites desejáveis.

Rasgões — Cortes acidentais em roupas levaram os artífices a desenvolver o cerzido invisível. Era um item de economia doméstica, especialmente para o tecido precioso. Hoje os rasgões já vêm de fábrica, e nem é possível a devolução com base no Procon. Shorts, bermudas e saiotes parecem aproveitamento de roupa velha, mas muitos já saem das fábricas assim. Elas já cortam as peças sem a parte das pernas, nem se preocupam em costurar na extremidade uma bainha, para não desfiar. Quando mais desfiado, melhor. E assim o mundo decadente prosseguiu sua decadência.

Remendos — Não me lembro de ter visto jeans remendado, embora isso seja bem adequado para novo passo previsível da decadência. Roupa remendada era coisa exclusiva de trabalhadores rurais (caipiras), e remendos servem até para enfeitar fantasias de festas juninas. Mas um remendo bem visível e eloquente não seria de estranhar na roupa de um decadente de hoje.

Relutei em manter a referência aos remendos, pois não me espantaria se algum promotor da decadência, zombando deste retrógrado cronista de bom gosto, resolvesse criar o jeans remendado. Os decadentes do mundo inteiro estão ávidos por novidades como esta. Não me culpem, se aparecer mais essa novidade, pois tenho a esperança (ou talvez a ilusão) de estar escrevendo para quem não é decadente.

Se você comparar tudo isso com as roupas do Capricho italiano, entenderá a extensão deplorável da decadência a que chegamos.
Título, Imagens e Texto: Jacinto Flecha, ABIM, 26-07-2014

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