segunda-feira, 21 de julho de 2014

Corações de João


José Carlos Bolognese

Eu Sou o Coração de João  

João e eu já estamos juntos há quase setenta anos. Ele é um sujeito comum – emotivo ou controlado conforme seu estado de espírito e as circunstâncias. Eu sou um cara mais racional; vejo-me mais como uma bomba hidráulica – na verdade, duas – uma que bombeia sangue para os pulmões e outra que o devolve ao corpo. João está aposentado, tem lá os seus problemas circulatórios, pesa mais do que devia e não gosta de ir ao médico. Ele acha que seus mais de trinta anos de aviação e as inúmeras avaliações físicas exigidas pela profissão, foram o bastante.

De minha parte, sou grato a essas checagens periódicas, pois elas alertaram o João para a minha existência – eu, que sou discreto, mas não gosto de ser ignorado. Era chato para o João acordar cedo quando não estava trabalhando para ir ao CEMAL fazer aqueles exames todos, mas eu, que não durmo – só reduzo o meu ritmo de trabalho quando ele dorme – ia tranquilo, pois sabia que João amava sua profissão e não ia deixar um problema técnico na sua turbina número 1 – e única – encerrar sua carreira precocemente.

João agora não precisa mais sentir a pressão de seus compromissos profissionais para cuidar de mim. Mas, como tem uma família bacana e bons amigos que se preocupam com ele, continua fazendo suas consultas médicas um tanto mais espaçadas e fazendo os exames que lhe são indicados. Eu agradeço. Sua sorte (e minha) é que saiu inteiro da ativa e conseguiu manter a renda e um plano de saúde. Preocupa-se um pouco, porque com o correr dos anos, o custo do plano aumenta e ele sabe que a tendência não é ficar mais barato.

Felizmente, para mim, o João está nessa faixa de moderados que, se não gosta de médicos, também não é dado a excessos. Não fuma, bebe só uma cervejinha de vez em quando e chama de exercício algumas caminhadas que faz e alguns ocasionais consertos domésticos. Gosta mais de ficar em casa, curtindo uma leitura ou um hobby, mas sempre que pode dá uma escapadinha com a família, sem saber que isto também contribui para o meu bom funcionamento.

Sem graves heranças genéticas e sem grandes sobressaltos, penso que o João e eu podemos emplacar aí… umas duas décadas ainda!


Eu Sou o Coração de João II

João e eu já estamos juntos há quase setenta anos. Enquanto ele voava pelo mundo eu fazia circular dentro dele o seu fluido vital. Durante seus mais de trinta anos de aviação, o que ele achava mais chato quando não estava trabalhando era acordar cedo, para revalidar o certificado de capacidade física no CEMAL. Já eu, ia satisfeito, como um avião que vai para a manutenção para pôr a máquina em dia. Além do que, acordar cedo, para mim, significa apenas acelerar o meu ritmo, pois eu não paro nunca.

O João aposentado se livrou do CEMAL e das pressões da profissão, mas como não se aposentou da vida, continuou acatando os conselhos da família e dos amigos (do peito) e, enquanto pode, manteve suas consultas e exames periódicos. Como nunca foi dado a excessos – sem fumar; bebendo pouco e se divertindo dentro do permitido à sua idade e as circunstâncias – conseguimos chegar a essa idade.

Durante alguns anos, numa fase em que João só via avião se olhasse para cima, sua vida foi tranquila e eu já não sofria com suas noites sem dormir, com os loucos horários, a pressurização, a microvibração, enfim várias coisas que rimam com aviação. E nada têm de bom.

No chamado “terceiro ato da vida” (inventamos tantos conceitos sobre a velhice como se fosse possível enganar o tempo enganando a nós mesmos) também se faz planos para o futuro, ainda que com mais moderação. João pretendia voltar a estudar, agora sem a preocupação de transformar conhecimento em salário. Foi nessa altura que ele descobriu que não podia mais contar com sua renda, que fora estabelecida sobre fundamentos frágeis de segurança jurídica e ela agora se esvaía pelos meandros da politicagem rasteira. João, no seu todo, é um time coeso de órgãos que trabalham segundo normas que, embora até flexíveis, não podem ser desafiadas ao ponto de ruptura. Ele sempre viveu e trabalhou achando que o mundo no seu entorno também era assim – ou devia ser. Ao entrar nessa fase, seu mundo virou de pernas pro ar. A primeira coisa que perdeu foi seu plano de saúde. E eu ganhei as primeiras batidas fora de compasso. Para ele foi como se o chão sumisse debaixo dos pés; para mim foi como minhas sístoles e diástoles saíssem da cadência normal.

Mas assim como eu desenvolvo vasos periféricos para compensar o desgaste natural, o João, que é conjunto completo dos órgãos, se vale dessa minha qualidade e de outras que ele tem. Ele sabe que tem de lutar pelo que é seu, e sabe que seus estados emocionais – e isto é passado imediatamente para mim – podem ser sua saída ou sua perdição. Tem dias que sofro intensamente com seus vales de apreensão e seus picos de ansiedade. Mas... tem dias que ele me recompensa com pensamentos iluminados, sem nenhum tipo de delírio, apenas reconhecendo que enfrentar dificuldades não é exclusivo da sua pessoa e, que com toda certeza, outros enfrentam problemas maiores que os seus.

Em dias assim ele não volta aos grandes projetos; visualiza o tempo mais imediato, o que cabe nos recursos que tem. Lê, aprende coisas novas, ouve música, pratica um hobby, conversa, trabalha... E devaneia um pouco, já que grandes esperas por resultados incertos são grandes indutoras de transportes espirituais. João se imagina num mundo mais funcional, longe e ao mesmo tempo aqui mesmo, e para isto se esforça para perceber as coisas...a vida que coloca em segundo plano quando se demora na psicosfera das mundanidades passageiras...

Desenho: Miichel
O sol nasce todos os dias, e se não pode ser visto sempre, a gente está seguro de ele estar lá. A natureza, mesmo duramente agredida, segue seu protocolo normal e repõe a vida onde lhe é permitido. E eu, que sou parte dessa natureza, me alimento dos cenários mentais mais elevados que João consegue visualizar. Fico feliz e bato mais forte quando ele consegue transcender a realidade mesquinha de malfeitos e malfeitores. Coexistir com eles não significa dar-lhes o valor que não tem. Como não estragar um texto ou prejudicar os meus batimentos, deixando eles prá lá sempre que for possível.
Título e Texto: José Carlos Bolognese, 21-07-2014

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