Eu, Christiane
F., A Vida Apesar de Tudo. Li tudo de uma vez numa tarde. É uma
leitura viciante. Parte do conteúdo eu já conhecia das minhas pesquisas em
reportagens sobre ela na imprensa europeia, quando eu editei e publiquei a
única cobertura em português sobre a vida dela pós-livro.
É ela mesma. 35 anos depois, o
estilo narrativo de Christiane Vera Felscherinow é o mesmo, inconfundível, com
o mesmo humor trágico alemão, sincero e brutal. E o mesmo espírito de
"jornalismo investigativo mundo cão" com a mesma missão de
apavorar o leitor e fazer a sociedade olhar as suas próprias entranhas podres,
cancerígenas e escondidas que a mídia nunca mostrou. A única diferença é
que, se antes ela falava como uma vítima inocente, agora se expressa num tom
tão cínico de mulher calejada e culpada, que chega a ser perturbadora.
Se no primeiro livro as
intervenções eram outros depoimentos de profissionais da área (médicos,
policiais, psiquiatras, clínicos, investigadores, a mãe e outros junkies) desta vez a única segunda voz é
alguém que cobre todos esses setores e com estômago para encarar o
insuportável: a jornalista Sonja Vukovic, acostumada a lidar com os
temas mais pesados e indigestos.
É Sonja quem complementa a narrativa de CF, escancarando o horror da estória do famigerado "Parque das Seringas" em Zurique — por azar, a mesma cidade suíça onde CF morou, alternando o luxo e o lixo — e contando como a Cena da Heroína degradou a cidade como um câncer, e que ao ser removida do parque, apenas espalhou as metástases para outros pontos da cidade, até matar um bairro inteiro na guerra de quadrilhas entre traficantes muçulmanos de três países islâmicos, com criminosos de três continentes.
É Sonja quem complementa a narrativa de CF, escancarando o horror da estória do famigerado "Parque das Seringas" em Zurique — por azar, a mesma cidade suíça onde CF morou, alternando o luxo e o lixo — e contando como a Cena da Heroína degradou a cidade como um câncer, e que ao ser removida do parque, apenas espalhou as metástases para outros pontos da cidade, até matar um bairro inteiro na guerra de quadrilhas entre traficantes muçulmanos de três países islâmicos, com criminosos de três continentes.
E vou te dizer uma coisa: a
Rainha da Podreira, do Sofrimento e da Degradação continua no trono.
Insuperável. Perto disso, todas as biografias de astros do rock doidões se
mostram o que de fato são: conversa fiada. Pose e purpurina pra levar
sua grana. A Coisa Real é a Junkie Suprema, baby.
NADA supera a drogada
ex-prostituida da Estação Zoo em termos de história real Barra-Pesada
deprimente, tão chocante quanto instigante. São fatos horrendos, de fazer até o
leitor mais embrutecido arrancar os cabelos e dizer: “Que porra é essa,
é o fim do mundo, onde estamos?!?” até ficar sem palavras, estarrecido.
Mundo cão mesmo.
Só o primeiro capítulo já é o
mais fundo soco no estômago, que te dá vontade de vomitar na hora. Christiane
F. nunca esconde nada mesmo: ela faz questão de descrever minuciosamente todos
os detalhes da sua atual condição física de falta de saúde. Agora, o pior de
tudo é que ela está morrendo desde 1989 — e não foi pro caixão ainda!?
Ela passou quase um ano num
presídio, quase foi assassinada com uma pá, lutou para sobreviver na cadeia,
subornou as detentas, se apaixonou por uma segurança e se sentiu mais saudável,
mais feliz e mais livre dentro da prisão do que no mundo lá fora. Tirou a
virgindade do namorado de 16 anos que se tornou um pop star mas não aguentou a
barra de ser namorado da Garota Mais Punk do Mundo. Colecionou abortos e
relacionamentos fracassados em quantidades que competiam entre si. Entre
outras desventuras, ela seqüestrou o próprio filho. Ou o resgatou das
garras da Lei. Depende do ponto de vista.
Isso sem contar a
desmoralização de certas figuras famosas. Ao dizer certas verdades que
NINGUÉM se atreve a dizer em público (e nem em privado) Christiane F. cumpre
o mesmo dever de Johnny Rotten na autobiografia dele e também desanca sem
piedade até mesmo David Bowie.
“Eu o acho um gênio das
finanças, com centenas de negócios no mundo todo, que têm nada a ver com
música. Mas desde os anos 80 David Bowie se tornou um músico medíocre.
Desde o álbum Let's Dance, ele deixou de ser aquele artista criativo
homem-cachorro de Diamond Dogs e passou a fazer música fácil para o mainstream
eletrônico. No último disco dele, The Next Day (2013), o primeiro single
é "Where Are We Now"? ("Onde Nós Estamos Agora?") Eu
respondo a ele: “Onde sempre estivemos, David. A verdade é que giramos tanto
e nunca saímos do mesmo lugar.” Toda vez em que nos encontrávamos, só
dizíamos coisas superficiais um para o outro. Foi um choque quando o conheci na
mansão dele na Suíça. Ele é pequeno e fraco, como meu pai. Foi uma grande
decepção. Uma parte vital morreu para mim.”
Nem mesmo o amigo Rodney
Biggenheimer sobrevive ao escrutínio de raio-X:
“A existência dele se
resume a viver na aba de estrelas famosas. Ele apenas gravita em torno delas.
Mas sem isso, não há mais nada; a vida interior dele é vazia. É muito triste.”
Ninguém escapa impune mesmo.
Principalmente ela própria.
Só papo cabeça. E, surpresa: a filosofia alemã
punk venceu. 7 X 1 nos burgueses.
O grande superpoder de Christiane F sempre
foi a sua incrível empatia: a capacidade de ver e entender os conflitos
internos na alma de cada pessoa com quem interage e daí perceber a origem de
tantos tormentos.
Foi assim quando ela
diagnosticou a psique do pai que a espancava aos 8 anos, da mãe que engravidou
cedo para se casar logo e sair da casa da avó nazista.
Além do talento para se
expressar filosofando sobre a condição humana de uma maneira que só os
existencialistas alemães conseguem, mas numa linguagem que qualquer adolescente
consegue entender e se identificar. Por isso que o relato dela é
absolutamente ÚNICO, original, insuperável. Não adianta tentarem imitar. Jamais
haverá outra Christiane F. Nenhum outro relato se iguala ou chega aos pés do
"livro-bomba" que explodiu nossas consciências.
“Tudo o que Christiane diz já
vem quase pronto para ser impresso. Ela consegue dizer tudo o que outros nunca
conseguiriam verbalizar, e com uma força literária real.” diz Horst Hieck, o
repórter que a entrevistou por dois meses em 1978 para um simples depoimento que
se tornou um série de reportagens e cresceu até encher um livro. Desta vez,
foram três anos de pesquisa e checagem de fatos antes do novo livro ir para o
prelo.
Apenas um erro de tradução
brasileira: logo após citar sua amizade com Nina Hagen, Christiane F. se refere a outra cantora alemã: NENA, e não Nina, como aparece na versão em português. E
é outra constatação surpreendente: foi mesmo Christiane F. quem tornou Nena
famosa mundialmente, quando Chris participou do programa de rádio de Rodney
Biggenheimer e tocou uma fita cassete com o sucesso "99 Luftbalons"
que a própria Nena regravou em inglês como "99 Red Balloons" um hit
instantâneo. A canção marcou tanto os anos 80 que figura na trilha sonora do
filme Watchmen.
Todos os amigos dela já
morreram. Da mesma causa mortis.
Um monte de Lendas do Rock já
subiram no telhado.
O ídolo máximo David Bowie
teve um piripaque e não pode mais fazer shows.
Título, Imagens e Texto: Ernesto Ribeiro, 01-08-2014
Ela viveu no topo do mundo, trabalhando como office girl e secretária da editora Diogenes do casal Keel e bancando a babá dos filhos deles, cuidando de evitar que os adolescentes crescessem alienados do mundo real, tendo Christiane F como conselheira. Ela agendava todos os compromissos com os autores da editora e os recepcionava. Foram 3 anos de glória e glamour na Suíça, convivendo com gente rica e famosa e intelectuais e escritores como Federico Fellini, Patricia Highsmith, Patrick Süskind...
ResponderExcluirSó papo cabeça. E, surpresa: a filosofia alemã punk venceu. 7 X 1 nos burgueses.
Que maravilha... Amo essa autora. Realmente ela passa tudo da realidade do mundo decadente dos drogados.
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