Se a agenda apodada de
“neo-liberal” pudesse ser levada por diante, Portugal entraria mais depressa no
séc. XXI. Como sempre, estamos atrasados, aferrados a paradigmas que já eram
velhos há 30 anos
Um dos principais contributos
teóricos dados por António Costa para o enriquecimento do presente debate
político em Portugal consiste na explicação clara, frontal e taxativa do que
move o governo do PSD: o premeditado conluio com a troika para impor a Portugal
doses nunca vistas de austeridade, dado ser esta uma “opção” “puramente
ideológica” e, portanto, em nada relacionada com qualquer espécie de
necessidade real. A aposta na austeridade constitui meramente uma parte da
“tralha” “neoliberal”, doutrina que nas suas linhas gerais e particulares
idolatra a riqueza e os ricos, louvando a multiplicação dos seus privilégios em
detrimento das classes médias e dos pobres, deste modo sancionando as
crescentes desigualdades que já envergonham o mundo.
Note-se, antes de avançarmos,
que Costa não apenas imputa a Passos uma ideologia gratuita e nefasta, como o
acusa de ter “desejado” a vinda da troika. Costa não vai ao ponto de aldrabar a
história e dizer que foi Passos quem a chamou. Mas é como se a tivesse chamado.
Fica claro, ainda que de forma implícita, que em seu entender o chumbo do PEC
IV não passou de uma manobra concebida com o vil desígnio de colocar Portugal
na dramática situação de escolher entre a bancarrota ou a rendição às mãos dos
“neo-liberais” estrangeiros que se ofereceram para nos emprestar o dinheiro que
os “neo-liberais” locais recolheram com avidez e regozijo pela tutela externa
que a aceitação do empréstimo implicaria (e implicou).
Não preciso de me pronunciar
sobre esta tese peregrina para salientar a mensagem que ela pretende transmitir
e o efeito que pretende provocar: persuadir-nos de que o Partido Socialista não
passa de uma virgem inocente, vítima da perfídia política do PSD, desresponsabilizando
pois o PS relativamente às desgraças que há três anos assolam a Pátria para
gáudio ideológico de Passos Coelho. Da mesma passada ficámos também a saber de
que maneira enviesada António Costa assume a herança de José Sócrates: silenciando
o seu lado negro, nomeadamente desligando o socratismo do desvario financeiro
que nos conduziu à hecatombe, pois que esta é por ele apresentada como uma mera
maquinação de Passos, que o PEC IV nos teria poupado. Costa apenas se dispõe a
herdar e a assumir o suposto lado solar do reinado socrático, largamente
fantasiado pelos fiéis do ex-primeiro ministro que Costa pretende arregimentar:
a audaz modernização do país, a visão rasgada do príncipe, que, injustamente
apeado do poder, se “recolheu” a Paris para se dotar de um arcaboiço filosófico
susceptível de fundamentar a sua governação, que os ignorantes ou invejosos
teimam em apodar de desastrada.
Apenas não se deixa fascinar pelos miríficos talentos do engenheiro essa raça danada dos “neo-liberais”, que ninguém foi capaz de definir com um mínimo de seriedade e precisão. Com efeito, os liberais – pois deles se trata – são difíceis de fascinar. São pessoas atentas ao real, sensíveis aos limites que ele impõe aos sonhos dos homens, por mais bem-intencionados que sejam. Aprenderam com a história os desastres sem nome a que conduziram no passado, sem excepções, as tentativas para criar um “homem novo” e provocar o parto de uma humanidade perfeita. Assim, convivem razoavelmente com as imperfeições do mundo e não se sentem atraídos por projectos revolucionários destinados a regenerá-lo.
Depois, os liberais convivem
bem com a riqueza e a existência de ricos. Para eles, o problema está na
pobreza e na existência de pobres. Estes superabundam onde não há ricos a criar
empregos, como nas cleptocracias africanas, por exemplo. Como disse Margareth Thatcher há mais de 25
anos, “Without the rich there will be no hope for the poor”. Pode
comprovar esta verdade quem queira passar umas férias agradáveis em São Tomé.
Ou, menos agradáveis, na Guiné-Bissau. Ou no Haiti. A única alternativa ao
papel social dos ricos até hoje encontrada foi o comunismo, que vigorou em
ditadura e graças à ditadura, conviveu com muita miséria e, ainda assim, acabou
por fracassar abjectamente.
Todas as atrocidades cometidas
pelos regimes comunistas foram-no – pelo menos teoricamente – em nome do
radicalismo humanitário, que visava, entre outras coisas impossíveis, nivelar a
sociedade e eliminar completamente a miséria. Cem anos antes já Garett denunciava
o logro da doutrina. “Fábula para néscios é o sonhado nivelamento das classes;
e quanto mais livre for um Estado, tanto menos possível será ela de realizar.
[...] O maior número dos habitantes de um país há-de sempre ser condenado,
pelas exigências da sociedade, aos lavores afadigosos e materiais que
embrutecem e abatem.” (1837)
O colapso do mundo soviético,
emblematicamente representado, entre outras coisas, pelos delirantes “planos
quinquenais”, tornou ainda mais evidente que o mercado – de mercadorias, de
emprego, de capitais, de ideias – continua a ser o instrumento mais eficaz
quando se trata de organizar a vida económico-social de uma sociedade livre.
Sobre isso, e mais importante do que isso, o mercado é indispensável à
liberdade colectiva e individual. Tratemos desta, que os liberais prezam mais
que tudo, mas a que a democracia igualitária, por horror à diferenciação
pessoal e social inerente à meritocracia, não dá praticamente valor nenhum.
A liberdade (e a autonomia)
dos indivíduos são valores centrais na ideologia liberal. A liberdade pela
liberdade – não a liberdade para fazer isto ou aquilo, para fazer o que apetece
sem reconhecimento de limites, não a liberdade cativa pela sua vinculação a um
objectivo que lhe seja estranho. Dos que procuram na liberdade outra coisa do
que ela mesma, disse Tocqueville que eram feitos para servir. A liberdade é o
que a todos permite desde a satisfação das suas necessidades e prazeres até à
expansão dos seus génios individuais; também pode proporcionar uma espécie de
fruição arcádica da vida inteiramente desprovida de utilidade ou heroísmo, mas
que vale por si mesma.
Interrogado sobre o que era a
liberdade, Benjamin Constant, um dos principais teóricos da liberdade e dos
regimes constitucionais, respondia em princípios do séc. XIX: é a possibilidade
de irmos de um lado para o outro sem que nos perguntem donde vimos nem para
onde vamos; é a possibilidade de ter uma conversa com um amigo sem receio de
ela ser investigada; é a possibilidade de formarmos e emitirmos livremente as
nossas opiniões estéticas, políticas, religiosas, filosóficas… (Cito de
memória). Mas por este rol de coisas tão simples, os liberais pagam um elevado
preço. Recai sobre eles, e só sobre eles, por inteiro, a responsabilidade por
cada acto, palavra ou pensamento. Não se podem desculpar com o Chefe ou com as
exigências de uma Causa. A liberdade dos liberais é livre e individual, e com a
responsabilidade passa-se o mesmo. É uma condição muito solitária, a do liberal
deixado frente a frente com as suas dúvidas e angústias, sem poder refugiar-se
na invocação de uma Autoridade, divina ou terrena, apenas entregue à
racionalidade dos seus argumentos.
Serão uma seita de
“estacionários” avessa a todo o progresso? Aos liberais se devem conquistas
civilizacionais que todos desejamos irreversíveis, como a separação dos poderes
do Estado, por exemplo (Montesquieu). São geralmente advogados de todas as
causas humanitárias que não envolvam utopias que resultam na barbárie ou
rupturas abruptas com a Tradição. Não cultivam o vanguardismo que trucida as
sociedades em períodos de convulsão. São reformistas, gradualistas, não são
revolucionários convencidos de que a violência política fornece um atalho para
o paraíso na terra. Para reformar e manter intacta a Liberdade é preciso um
governo forte. Não há aqui contradição alguma.
O nosso governo não dispõe
desta vantagem, como se tem visto, enleado como vive por constrangimentos
constitucionais e desapoiado por um semi-presidencialismo que paralisa o
Presidente da República. Reformar Portugal torna-se assim mais difícil, pelo
imobilismo sistemático da extrema-esquerda e de parte do PS, para quem toda e
qualquer reforma de consequência constitui um atentado aos sacrossantos
“direitos adquiridos”, mesmo quando a mais elementar aritmética comprova que
são incomportáveis.
Portugal vive refém de uma
partidocracia caracterizada pela incapacidade de compromisso dos partidos à
Esquerda. O mundo laboral, entregue ao Partido Comunista, tornou-se intocável
ao abrigo de uma Constituição obsoleta. O PS, por medo ou convicção, não se
atreve a tocar na arca sagrada dos direitos dos trabalhadores. Só os
“neo-liberais”, indiferentes à pobreza e ao desemprego, defendem reformas
sócio-económicas susceptíveis de irem apetrechando o País para uma competição
global bem-sucedida, que é o único meio de a prazo minorar o desemprego e
tornar Portugal mais próspero.
Ilude-se quem acredita que a
nossa salvação está na restauração da estrutura económica assente numa miríade
de micro-empresas familiares, como acontecia antes da crise e de boa parte
delas terem sido irradiadas. Este mundo, que António Costa quer em larga medida
reanimar (ver entrevista ao Público de 20/7), não é do Mundo de hoje. Mas, é
claro, um semelhante diagnóstico só podia proceder de um “neo-liberal”
tipicamente desalmado e unicamente movido pela ambição de empobrecer o País e
ajudar os ricos a prosperar. Deste absurdo se acusa Passos Coelho, o ideólogo
do “neo-liberalismo” doméstico que teve a ousadia de querer preparar Portugal
para enfrentar o mundo contemporâneo. Infelizmente, a rigidez das instituições
e a força do corporativismo deitaram largamente a perder este desígnio
meritório.
Se a agenda apodada de
“neo-liberal” pudesse ser levada por diante, Portugal entraria mais rapidamente
no séc. XXI. Como sempre, estamos atrasados, aferrados a paradigmas que já eram
velhos há trinta anos, e ingenuamente apostados em que a Europa, e até o Mundo,
nos ajudarão a conservá-los.
Título e Texto: Fátima Bonifácio, Observador,
01-08-2014
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