segunda-feira, 8 de setembro de 2014

Macroscópio – Sonâmbulos ou apaziguadores? O debate sobre a resposta à crise ucraniana

José Manuel Fernandes
 
Foi no princípio de Setembro de 1914, há exactamente 100 anos, que se desvaneceu a hipótese de a guerra que se iniciara pouco mais de um mês antes. Nas margens do rio Marne, a poucas dezenas de quilómetros de Paris, o esforço desesperado dos franceses conseguiu fazer parar a ofensiva alemã numa altura em que todos já acreditavam numa reedição da derrota humilhante de 1871. Os alemães estavam quase à vista da Torre Eiffel quando uma sucessão de erros do seu alto-comando comprometeu uma vitória que parecia certa (link do Le Figaro, para assinantes). As primeiras trancheiras, nas quais morreriam milhões de soldados, começaram a ser cavadas no final desse mês de Setembro.

Os líderes que então conduziram a Europa em direcção a esta catástrofe já foram designados por “sonâmbulos” pois foram seguindo sempre em frente sem perceberem a tempestade que se aproximava (é essa, por exemplo, a tese de Christopher Clark em The Sleepwalkers: How Europe Went to War in 1914). 25 anos depois, uma outra geração de líderes ficaria também conhecida por uma designação prejorativa, os “apaziguadores” (The Appeasers, por Martin Gilbert), por terem imaginado que, cedendo a Hitler, acalmariam as ambições expansionistas do seu regime.

Nos dias que correm discute-se se a Europa está de novo a ser conduzida por “sonâmbulos” ou por “apaziguadores”, tudo porque se discute o que a Europa deve fazer para responder à crise na Ucrânia e à agressividade da liderança russa. Esse debate é o ponto de partida desta Macroscópio, o primeiro depois da cimeira da Nato em Newport, País de Gales.

Vou começar com uma reflexão que já vem do final da semana passada e esteve na base da habitual conversa, às quintas-feiras, entre Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto. O ponto de partida foi a passagem de 75 anos sobre o dia em que a Alemanha invadiu a Polónia, iniciando a II Guerra Mundial. A continuação passou pela guerra que se reacende no Leste da Europa: já não em Danzig (hoje Gdansk), mas Donetsk. O manifesto dos intelectuais polacos foi pretexto para um debate muito vivo e com vincadas divergências sobre a forma como encarar a Rússia de Vladimir Putin.

Num texto que escrevi hoje - Não, não iremos morrer a Donetsk – defendo a ideia de que há uma enorme distância entre palavras e actos quando se fala de democracias como as do Ocidente estarem preparadas para defender os seus princípios até às últimas consequências.

A hipótese de ter de defender o nosso país não se coloca, a de combater algures no mundo em nome de valores partilhados ainda menos. Sociedades que gastam um quinto da sua riqueza a pagar pensões de velhice – e onde grande parte da população depende desse pagamento para sobreviver – não precisam de gostar muito de McDonalds para não estarem preparadas para defender o tipo de valores que está em causa no conflito ucraniano. Isso não acontece por falta de vontade política dos líderes – isso acontece porque foi assim que preferimos viver. E ainda bem.

Por isso mesmo é que existe, entre nós, no Ocidente, “a convicção generalizada, a vontade enraizada de que não, não iremos morrer por Donetz”.


A discussão sobre o que se estará preparado para fazer, na Nato, na Europa, nos Estados Unidos, face a uma possível degração da crise na Ucrânia tem sido tema de muitos artigos relevantes. Destaco, por exemplo, o ensaio de Robert Kagan editado este fim-de-semana pelo Wall Street Journal, America's Dangerous Aversion to Conflict. Nele é estabelecido um interessante e informado paralelo entre o comportamento das líderes liberais no anos 1930, quanto tiveram de enfrentar Hitler, com o actual comportamento dos nossos líderes. Para chegar à seguinte conclusão:

The wise men and women of our own time insist that this history is irrelevant. They tell us, when they are not announcing America's irrevocable decline, that our adversaries are too weak to pose a real threat, even as they pile victory upon victory. Russia is a declining power, they argue. But then, Russia has been declining for 400 years. Can declining powers not wreak havoc? Does it help us to know that, in retrospect, Japan lacked the wealth and power to win the war it started in 1941? Let us hope that those who urge calm are right, but it is hard to avoid the impression that we have already had our 1931. As we head deeper into our version of the 1930s, we may be quite shocked, just as our forebears were, at how quickly things fall apart.

Esta é a tese que compara as actuais lideranças aos “apaziguadores”. Karl-Theodor zu Guttenberg, um antigo ministro da Defesa da Alemanha, critica-os mais por serem “sonâmbulos”: The Return of Europe's Sleepwalkers.
Nele ataca aquilo que classifica como a “hesitação cínica” dos principais responsáveis europeus face ao avolumar de crises, da Ucrânia à Síria, passando pela Líbia:

Today we see the menacing signs multiplying, but we have not been willing to accept the fact that armed conflicts have come to Europe's doorsteps again. Today's sleepwalkers do not recognize the consequences of their inaction. It is time to wake up.

O regresso destes temas de geopolítica às páginas dos jornais, e também à discussão pública, foi notado por Miguel Monjardino na sua coluna do Expresso. Nela sublinhou que, para passar das palavras da cimeira da Nato aos actos, isso “só será conseguido se os países europeus se mantiverem unidos do ponto de vista político, gastarem mais na sua defesa e assegurarem as condições que permitam às suas forças armadas agir em conjunto. Mas será que há vontade política a nível interno e margem de manobra orçamental no eixo Berlim-Bruxelas para trazer a estratégia de volta à Europa? Esta é a pergunta decisiva.”

No Público, Teresa de Sousa mostrou-se mais optimista, defendendo que a cimeira do país de Gales foi “histórica”: “A NATO acaba de realizar uma cimeira histórica, vendo-se obrigada a voltar outra vez ao ponto de partida: garantir a defesa dos aliados perante a “paz quente” que Putin conseguiu instalar na Ucrânia.” Mais: “A Europa acordou. Os Estados Unidos perceberam que esta era uma ameaça global num mundo que testa constantemente o seu poder e a sua vontade de se manter-se como o 'polícia' do mundo.”

O Wall Street Journal defende, em editorial, uma posição diametralmente oposta: A Bad Week for Free Europe. Isto porque “Putin wins in Ukraine, and NATO doesn't rise to the challenge”. Isto porque a Nato não tomou as medidas que devia ter tomado para estar à altura das palavras dos seus dirigentes:

In Estonia this week, Mr. Obama gave one of his better speeches promising that an attack on a fellow NATO member is an attack on America. Having taken Mr. Obama's measure for six years, and after this week of tough talk but soft actions, Mr. Putin is unlikely to believe it. A week that was supposed to make Europe safer may have invited more aggression from Moscow.

A revista The Economist também escreve, num dos seus editoriais – The long game - que Putin está a ganhar na Ucrânia. E propôs uma estratégia que inplicará persistência e só dará resultados ao fim de anos:

One aim of all this should be to bolster Ukraine’s hand in the negotiations that, sooner or later, it will probably have to enter. (More generous financial aid, to save its free-falling economy and help pay its energy bills, is needed too.) The other aim is to put pressure on Mr Putin. (…) And even if Western punishment fails to modify his behaviour in the short term, the underlying goal should be to tame him (and perhaps his successors) in the future, for Ukraine is plainly not the end.

Deixo-vos por hoje, com a recomendação de que intercalem as leituras com uma vista de olhos à conversa entre Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto. Aprende-se sempre a ouvi-los. 
Título, Imagem e Texto: José Manuel Fernandes, 08-09-2014

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