terça-feira, 2 de setembro de 2014

Macroscópio – Tempos estranhos e perigosos


José Manuel Fernandes
Será que, 100 anos depois, os líderes europeus caminham, como sonâmbulos, para uma nova guerra como a da 1914-18? Será que, 75 anos depois, os líderes europeus assistem impávidos a uma escalada que pode acabar numa nova catástrofe, como em 1939/45?

Estas perguntas voltam a ser ouvidas um pouco por toda a Europa numa altura em que, no sudeste da Ucrânia, o ambiente é já de guerra aberta. Durante o fim-de-semana, Vladimir Putin disse, numa conversa telefónica com Durão Barroso, que podia “tomar Kiev em duas semanas”. Ontem Valeriy Heletey, ministro da Defesa ucraniano, acusou a Rússia de ser responsável por trazer uma “grande guerra” para a Europa.

José Milhazes, o jornalista português que melhor conhece a Rússia, segue esta evolução com enorme preocupação e, numa crónica no Observador, defendeu a ideia de que Putin não cobiça apenas o sudeste da Ucrânia, quer dominar todo o país. E acrescenta, como uma nota de pessimismo:
Chegar com os tanques a Kiev em duas semanas poderá ser muito improvável, mas para Putin não é utópico chegar um dia à capital ucraniana. Talvez lá para o Outono ou Inverno...

Quem vive no leste da Europa sente estes problemas com muito mais intensidade, pelo que não surpreende a tomada de posição de um conjunto de intelectuais polacos, que num manifesto publicado ontem, 1 de Setembro, exactamente 75 anos depois de os tanques alemães (e soviéticos) terem violado as fronteiras do seu país, assim dando início à II Guerra Mundial, apelam à mobilização dos povos da Europa contra os avanços da Rússia de Putin. Intitulado “De Danzig até Donetsk”, esse manifesto, que foi divulgado por vários grandes jornais europeus e também publicado no Observador, tem palavras fortíssimas:

Quem seguir hoje a política de “continua tudo na mesma” em relação ao conflito entre a Rússia e Ucrânia está a fechar os olhos a milhares de russos e ucranianos que estão a morrer, a centenas de milhares de refugiados e a ataques consecutivos das forças imperialistas de Putin a outros países.
Ontem foi Danzig, hoje é Donetsk: não podemos permitir que a Europa viva, outra vez, com uma ferida aberta e a sangrar durante décadas.


Dir-se-á que exageram. Contrapor-se-á que estando eles, como polacos, mais próximos da Ucrânia (estão lado a lado, mais exactamente), e conhecendo eles muito melhor do que nós a natureza da Rússia, devemos ouvi-los com atenção. Vasco Pulido Valente comentava este fim-de-semana como pode ser um logro acreditar que a grande integração económica hoje existente entre a Europa e a Rússia evita, só por si, uma guerra. Lembrava, a propósito, um livro famoso há 100 anos, A Grande Ilusão, de Norman Angell.

O Czar leu o livro, o Kaiser leu o livro, toda a gente leu o livro, que trazia uma inesperada consolação a uma Europa tensa e pouco segura. Que “grande ilusão” era essa? Era a ilusão de que as potências da Europa, incluindo a Rússia, estavam na iminência de uma guerra geral. Contemplando com desprezo esse erro universal, Angell explicava que a interdependência económica e financeira das potências não lhes permitia qualquer acto de hostilidade grave sem se arruinarem. (…) De qualquer maneira, bastaram uns meses para se verificar o engano monstruoso de Angell. Um erro que vinha de confundir economia e finanças com necessidade política. 

Uma notícia dos últimos dias leva-nos, contudo, a ter mais esperança na capacidade de reacção da União Europeia. Refiro-me à eleição, para Presidente do Conselho Europeu, de Donald Tusk, o até agora primeiro-ministro da Polónia.

Esta eleição foi saudada por João Carlos Espada, que falou de Tusk como “o nosso homem na Europa”. Nesse artigo defende que a eleição do PM polaco “é desde logo um sinal muito claro que não passará despercebido na Rússia — mesmo ao sr. Putin e seus apaniguados”. Isto porque “a Polónia tem liderado nos últimos meses os apelos para tomadas de posição mais firmes por parte da Europa e dos EUA face à Rússia”. O autor acredita que, “agora, a voz da Polónia será escutada a partir da presidência do Conselho Europeu”.

João Marques de Almeida defendeu uma posição semelhante aqui no Observador. Este colunista defende que Tusk será “o homem da política externa da UE”, acreditando que “terá um papel muito mais activo nas relações externas do que teve Von Rompuy”, alguém que nunca se sentiu à vontade nas questões internacionais. Mais:

A Guerra na Ucrânia será a prioridade imediata para Tusk. A Polónia tem desempenhado um papel central nas posições da UE em relação ao conflito. Quer na adopção de sanções contra Moscovo, como no reforço da parceria com Kiev. E Berlim ouve Varsóvia, tal como no futuro Merkel ouvirá o novo Presidente do Conselho Europeu. 

O embaixador da República da Polónia em Lisboa, Bronisław Misztal, um reputado intelectual e académico que tem sido activíssimo na dinamização das relações Lisboa/Varsóvia, também ficou feliz com esta eleição. Num texto intitulado “O homem da esperança”, Misztal escreveu:

O que a Polónia traz para a Europa é um histórico de sucesso no meio de problemas de outras nações; é uma energia e optimismo de que nós Polacos somos impregnados; é um gene da democracia que está vivo em cada um de nós. Significa muito que quase 75 anos após o dia em que Hitler invadiu a Polónia, a "Europa unida" tenha um líder polaco. 

Antes de terminar queria propor-vos uma outra perspectiva, contrária às anteriores. Refiro-me a um ensaio publicado na última edição da Foreign Affairs no qual John J. Mearsheimer, um professor de relações internacionais da Universidade de Chicago, defende a tese de que a culpa de tudo o que se está a passar é do Ocidente e do seu desejo de integrar a Ucrânia na União Europeia, porventura até na NATO, algo que a Rússia sempre considerou intolerável. Vale a pena conhecer os seus argumentos:

The crisis there shows that realpolitik remains relevant -- and states that ignore it do so at their own peril. U.S. and European leaders blundered in attempting to turn Ukraine into a Western stronghold on Russia’s border. Now that the consequences have been laid bare, it would be an even greater mistake to continue this misbegotten policy.

E já que estou numa de textos com perspectivas contrastantes, proponho-vos uma última viagem até três países vizinhos tanto da Polónia como da Ucrânia, uma viagem pela Lituânia, pela Letónia e pela Estónia. Esther Mucznik acaba de regressar desses países bálticos, onde notou como a sua memória colectiva escolheu centrar-se no abominável das décadas de domínio soviético e quase omite os horrores da ocupação nazi e do extermínio dos judeus. Assim: “'A União Europeia será talvez uma resposta à história, mas nunca poderá substitui-la', escreveu Tony Judt. O que por vezes temos tendência a esquecer". Já o eurodeputado Paulo Rangel, cada vez mais federalista, usa o exemplo dos países bálticos, de que descreve os encantos, para defender a ideia de que, porque nenhum deles quis ficar fora do euro, aí se dão “lições de europeísmo”.

Termino esta newsletter numa altura em que cai a notícia de que os radicais islâmicos do ISIS decapitaram mais um jornalista norte-americano, Steven Sotloff. É uma notícia triste, mais uma a lembrar-nos de como são perigosos os tempos que vivemos.

Boas leituras.
Título, Imagem e Texto: José Manuel Fernandes, Observador, 02-09-2014

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