Gabriel Mithá Ribeiro
Infelizmente o ambiente em
Portugal em matéria de liberdade de pensar, sobretudo para quem não tem
pedigree, é tudo menos saudável. Só sobram nichos de exceção, mais ou menos
como no tempo de Salazar.
Já o fazia pontualmente antes,
mas desde 2003, após a publicação do meu primeiro livro sobre o tema, tento
escrever livremente sobre educação. O obstáculo tem sido o de encontrar quem
aceite publicar o que escrevo. Foi o desconforto com a liberdade limitada em
que vivemos que fez de mim militante partidário. Numa altura em que se
adivinhava o desastre eleitoral do governo de Santana Lopes, em fevereiro de
2005, fui pelo meu pé fazer a inscrição na concelhia do PSD da minha área de
residência. Acreditava que os tempos de oposição seriam tranquilos para que se
debatesse de modo consequente e estruturado o ensino básico e secundário e daí resultasse
um projeto político convincente.
Era votante habitual do PSD,
mas o lamentável estado ensino foi a razão da minha militância. Se os partidos
políticos se contam entre os maiores responsáveis pelas graças e desgraças da
educação, haveria que tentar essa via. Quase uma década passada continuo à
espera, pagando as quotas e pouco mais. Talvez um novo ciclo de oposição abra
as mentes para que se perceba a razão de falhanços sucessivos de diferentes
ministros. Eles acabam também por ser bodes expiatórios de máquinas partidárias
disfuncionais nesta área.
Se o sistema é ideologicamente
dominado pela esquerda, das universidades aos autores de manuais escolares,
passando pela máquina autónoma do ministério da Educação ou pelos sindicatos, o
PSD, na qualidade de um dos maiores partidos políticos portugueses, é o que
menos tem sido capaz de apresentar propostas sólidas que apontem diferenças
substantivas e socialmente credíveis. Elas nem sequer são difíceis de
estruturar e conseguir o apoio de parte da opinião pública. O problema é que
isso exige capacidade de interpretar um conjunto de sintomas sociais que se
manifestam todos os dias nas escolas mas que não captam a atenção séria dos
partidos políticos, constituindo a indisciplina nas salas de aula um exemplo maior.
Um par de semanas antes da
minha entrada pífia na militância partidária, em 2005, um episódio foi
decisivo. Tinha um acordo para escrever na desaparecida «A Capital». Ao fim da
segunda crónica intitulada «Mostrengo» fui sumariamente afastado pelo diretor
do jornal, Luís Osório. Partilhava a página das minhas ousadias analíticas
sobre o ensino com outros paladinos da liberdade de esquerda, no caso Daniel
Sampaio e um grupo autointitulado Inquietações Pedagógicas. Estes e outros,
como o delicodoce Eduardo Sá, são responsáveis por aquilo que então já era o
rumo problemático das políticas educativas que eles sempre têm condicionado com
fortes componentes de irresponsabilidade. E assim nos temos arrastado, entre a
imposição da censura a uns (nem a “africanidade” e o percurso vivencial de
pobreza salva quem não é de esquerda) e o direito à irresponsabilidade de
outros, muitas vezes bem-nascidos.
Isto também vem a propósito de
um episódio que li esta manhã no Observador. A equipa cessante de responsáveis
da revista Análise Social, supostamente das publicações mais prestigiadas na
área das ciências sociais – João de Pina-Cabral, Catarina Fróis, Helena
Jerónimo, José Neves, Pedro Ramos Pinto e Renato do Carmo – queixa-se da
censura do diretor do ICS, José Luís Cardoso. Este retirou de circulação o
último número da revista por causa de um artigo ideologicamente explícito da
autoria do sociólogo Ricardo Campos. São esses mesmos queixosos de agora que
recusaram sucessivos pedidos meus de artigos para publicação. Tentei contestar
essas decisões que afetam gravemente a liberdade de produzir conhecimento em
meios académicos, situação bem mais grave do que o que acontece na imprensa,
avançando com uma publicação “comercial” com o título “O colonialismo nunca
existiu!” (passo a publicidade).
Comparando o conteúdo deste
livro com o que tudo indica ser o “alegadamente” censurado artigo científico de
Ricardo Campos será facílimo identificar quem são os donos ideológicos das
universidades públicas e quem tem sentido pressões para se afastar dos meios
académicos, para desistir, ou a procurar acolhimento em instituições privadas.
E sem artigos publicados nas revistas ideológico-científicas do regime não há
candidaturas a contratos para investigador na FCT que tenham hipóteses, até porque
a regra é a de os membros dos júris beberem da mesma fonte.
Outra característica que
espelha o controlo ideológico do pensamento, com reflexo nas revistas
científicas, para além de quem pode ou não publicar e como, é a das
bibliografias dos artigos, teses e por aí adiante. Existem autores que aparecem
vezes sem conta, ou têm de aparecer, e outros que não convém colocar em
determinados ambientes. No meio africanista que conheço, Boaventura de Sousa
Santos fica sempre bem. Jaime Nogueira Pinto não ajuda. Mesmo que a qualidade
do trabalho do último seja muitíssimo superior à qualidade do trabalho do
primeiro e não subsidiado nos avultados montantes do primeiro. Numa pesquisa
que fiz sobre relações raciais, um dos autores mais importantes de que tomei conhecimento,
Dinesh de Souza, nunca me foi referido pelas pessoas do meio com quem falei
sobre o tema e só por acidente soube do livro “The end of racism”. Não sendo o
autor de esquerda e ousando tocar num dos feudos dos ditos, o racismo, o livro
datado de 1995 até hoje não teve direito a tradução por cá, em tantas que se
fazem.
Infelizmente o ambiente em
Portugal em matéria de liberdade de pensar, sobretudo para quem não tem pedigree,
é tudo menos saudável. A graça é que sobram sempre alguns nichos de exceção,
mais ou menos como no tempo de Salazar.
Título e Texto: Gabriel Mithá Ribeiro, Historiador,
especialista em estudos africanos,
Observador,
29-10-2014
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