quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Macroscópio – 2 de outubro


José Manuel Fernandes
A Comissão de Jean-Claude Juncker não está a ter uma vida fácil no Parlamento Europeu. A sua equipa está mesmo em risco, depois de algumas audições que não convenceram os eurodeputados – que dificilmente os convenceriam, de resto. Mas as dificuldades do antigo primeiro-ministro luxemburguês são apenas a parte visível de um iceberg de problemas muito maior. O problema mesmo são os eleitores de muitos países europeus, que continuam a dar sinais de um crescente distanciamento da forma como a política institucional europeia tem evoluído.

Esta segunda-feira, Simon Nixon, um colunista europeista do Wall Street Journal, punha o dedo na ferida: Fringe Parties Unleash a Political Earthquake - Populist Rebellion Accelerating in Europe. O seu alarme era evidente logo no primeiro parágrafo da crónica: “Something extraordinary is going on in European politics. The populist rebellion that saw fringe parties secure almost 25% of the seats in the European Parliament in May elections appears to be accelerating, rather than abating as some had predicted.”

Na véspera, domingo, a Frente Nacional francesa tinha conseguido, pela primeira vez na história, eleger dois membros para o Senado. Algumas semanas antes fora a vez do partido eurocético alemão, AfD – Alternativa para a Alemanha, entrar em três parlamentos regionais, com votações robustas. Na Suécia foi um partido de extrema-direita, os Democratas suecos, que, ao conseguir ser o terceiro partido mais votado, deixou o parlamento bloqueado, sem maioria viável à esquerda ou à direita. Finalmente, no Reino Unido, os conservadores de David Cameron continuam a perder parlamentares (e financiadores) para o UKIP de Nigel Farage.

O problema identificado por Simon Nixon é simples: “Across Europe, mainstream parties of both left and right are seeing their electoral base fragmenting, forcing them to compete for a shrinking center ground.” Perdem terreno mais para a sua direita no Norte da Europa, mais para a sua esquerda no sul da Europa, perdem sobretudo terreno devido ao que define como um fenómeno pan-europeu: “What they share is a repudiation of Europe's elites, which has been fueled by the financial crisis.”

Nalguns países esta evolução da paisagem política pode pura e simplesmente paralisar os esforços para encontrar soluções de compromisso à escala europeia. Um dos países onde isso pode suceder é precisamente a Alemanha, onde o partido de Angela Merkel assiste com crescente ansiedade à subida da AfD, a qual defende a saída do euro e o regresso ao marco. Isso mesmo é sublinhado pelo colunista do Financial Times Wolfgang Münchau: “Germany’s eurosceptics sow the seeds of turmoil”. Eis como ele vê o futuro:

The AfD only needs to create doubt to upset this equilibrium. It does not need to win an election or become part of a government. Its strategy will be to test the limits of Germany’s commitment. That strategy stands a fair chance of success. And when that happens, it will wreak havoc.

Talvez não seja necessário esperar por uma nova crise do euro para o mal-estar se instalar na Alemanha. Talvez bastem as discussões, que se avizinham, sobre a intenção da França de não cumprir, mais uma vez, os limites do défice em 2015, como se tinha comprometido, empurrando o objectivo para 2017. É certo que a França não está sozinha, pois tem a Itália consigo - France and Italy push for fiscal leniency, escreve o Financial Times –, mas será para França que se olhará em primeiro lugar.

Eva Cabral reflete hoje sobre o tema no Jornal de Negócios - Declaração de amor de francês em Berlim – e, domingo passado, Teresa de Sousa analisara os sinais que apontam para o fim do eixo franco-alemão. E chegara à mesma conclusão dos analistas que temos vindo a citar:
A paisagem política europeia não é animadora, quando quase todos os partidos europeus em quase todos os Estados-membros estão em forte perda, em benefícios dos extremos, porque não conseguem explicar aos seus eleitores que a sua melhor hipótese para enfrentar estes tempos de mudança e de medo ainda pode ser a União Europeia.

O grau de sensibilidade da Alemanha em relação à evolução das políticas europeias também é elevado e a desconfiança em relação à forma como Bruxels utiliza os dinheiros colocados à sua disposição – sendo que a maior fatia é de contributos alemães – não é apenas tema dos tablóides. A imprensa de referência também está atenta e um bom exemplo disso é uma reportagem da última edição da Spiegel dedicada a alguns gastos sumptuários em obras públicas em Espanha. O título diz quase tudo: “Bridge to Nowhere: Are EU Subsidies for Andalusia Well Spent?” A história é a de uma gigantesca ponte que está a ser construída em Cadis sem aparente valia económica. Mas há muito mais na reportagem. Por exemplo:

Andalusia receives more EU money than almost any other region in Europe. The EU, together with money made available by Spain, made a total of €14 billion available to the province between 2007 and 2013. Some €2.3 billion from the European Social Fund was provided for training programs for unemployed Andalusians. But Spanish anti-corruption officials believe that many of the registered vocational training courses never actually took place.

Não faltarão razões aos alemães para se preocuparem com dinheiro mal gasto em países como Espanha (ou Portugal, como bem sabemos). Este verão, o diário El Mundo publicou uma série de reportagens sobre o que designou como "La España del despilfarro", A Espanha do desperdício. As histórias são quase inacreditáveis. Em Un puente a ningún sitio conta-se como se gastaram 70 milhões de euros numa ponte sem ligações;
El supositorio de oro fala-nos do que pretendia ser o Spa mais caro do mundo e hoje é apenas um amontoado de pó;
El 'mejillón' de los 80 millones conta-nos a história de um centro de congressos que só é utilizado 6% do ano;;
e Una burbuja de hormigón de 52 millones en plena Soria, o projecto frustado e abandonado de um Silicon Valley nas margens do Rio Douro.

Tudo isto coloca problemas de coesão a uma Europa que continua sem encontrar, ou reencontrar, os caminhos do crescimento. Ainda hoje o BCE anunciou como tencionava injetar liquidez de até um bilião de euros nas economias através da compra, no mercado, de ativos financeiros à banca, uma política que, como ontem referimos, leva muitos alemães a torcerem o nariz, alemães que também experimentam as suas dificuldades, como assinalava esta semana a Economist, citando a obra de um conceituado economista que teria identificado as “três ilusões” que podem condenar a maior economia europeia ao mal das outras economias, a falta de crescimento.

Foi com este pano de fundo que estive hoje à conversa com Jaime Gama e Jaime Nogueira Pinto – o Conversas à Quinta. Começámos a nossa discussão com o que pode vir a significar uma generalização do sistema de eleições primárias e acabámos a falar de populismo e do que ele representa para as democracias europeias. Uma conversa inteligente e desinibida, onde se fala com à vontade e se discute como, por exemplo, as redes sociais são mais uma reunião de solidões do que plataformas para a partilha de ideais comuns.

A ouvir. Por entre as outras leituras.  
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador, 2-10-2014

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