quarta-feira, 26 de novembro de 2014

Não ser mais suspeito do que o suspeito

David Dinis
Num mundo ideal, as imagens de Sócrates a sair do aeroporto não tinham acontecido. Mas num mundo ideal, quem está a investigar casos destes não deve ser mais suspeito do que o suspeito. É só isto.

Tinha acabado de ouvir as medidas de coação aplicadas a José Sócrates – prisão preventiva, por suspeita de corrupção, branqueamento de capitais, fraude fiscal qualificada -, quando vi a Clara Ferreira Alves e o Miguel Sousa Tavares na SIC Notícias. O que vão ler de seguida é o comentário deles, comentado por mim, sem rede nem testemunhas, à frente da televisão.

Clara Ferreira Alves
Para dizer a verdade o que sabemos deste processo é apenas o que tem sido dado através de fugas de informação, o que também não está certo.

Isto não era um comentário às medidas de coação?

Em termos de direitos humanos discute-se até que ponto (este prazo de três dias até haver decisão do juiz) é considerado aceitável. O caso foi transformado num formidável reality show. Os próprios advogados sabem muito pouco sobre isto. Os direitos de defesa estão gravemente ameaçados.

Direitos humanos? Claro que é difícil, mas fazia-se como? Iam todos para casa e voltavam no dia seguinte, como se fosse uma entrevista? E os advogados sabem pouco como, se eles ainda nem disseram nada publicamente? E não estiveram os três dias a consultar o processo?

Há uma condenação sistemática, um julgamento público. Isto não deve acontecer nesta fase num processo desta gravidade. Esta encenação propiciou este julgamento, sem base para isso.

Condenação sistemática!? Sim, talvez o melhor seja não se falar do caso em que um ex-primeiro-ministro é suspeito de coisas tão graves. Se calhar é melhor nem sabermos do que ele é suspeito.

Isto não devia acontecer num caso com esta gravidade? Mas porquê, se fosse com menor gravidade já se podia?

Estes casos não são extraordinariamente difíceis de provar. São casos que têm um rasto bancário, através dos computadores, etc.

Pois são, facílimos de provar. O que há mais por aí é isso, casos de corrupção e branqueamento provadíssimos e transitados em julgado.

A sentença depois não muda para contrariar a opinião pública. Muitas vezes a pressão social é tanta que a própria justiça está encurralada, em que já não pode ilibar.

Muito bem, se para a opinião pública José Sócrates já é culpado, para a Clara Ferreira Alves é já inocente –  mas já é certo que vai ser dado como culpado porque a investigação está a manipular a opinião pública, para que o tribunal não tenha margem de manobra. (Respirar fundo).

A justiça portuguesa não me oferece garantias de procedimentos corretos, seguidos com a máxima verificação de que os pressupostos estão lá todos. Como pode ser julgado com isenção?! Ele não vai ser julgado com isenção. Há uma psicose com José Sócrates. Começou com acusações de homossexualidade, havia provas, a polícia tinha isto e aquilo. Depois veio o Freeport, em que as autoridades inglesas tinham provas, lembram-se?

Ora bem, não pode ser julgado com isenção, há uma psicose, todos os outros processos contra ele não deram em nada. Portanto…

São processos de excepcional complexidade que exigem tempo. É humanamente impossível para uma só pessoa (tratar deles todos).

Ah! Afinal o processo é de excecional complexidade. Se calhar, no fim das contas, pode fazer sentido ficar preso preventivamente.

Aquilo que aconteceu no caso dos submarinos é que passaram-se dois pormenores, um foi caso de fuga de informação, noutro não: as fotocópias feitas numa noite inteira por Paulo Portas no Ministério da Defesa (prova, não prova, não faço ideia).

Pronto, assim está certo: como o Portas tirou fotocópias, isso é suspeito – e aí já não faz mal ter saído na imprensa.

Estamos a falar de acusações gravíssimas. Mas pessoas que praticam crimes de alta corrupção não se expõem publicamente com esta veemência.

Isso mesmo! Expõe-se, logo não é suspeito. Faz sentido.

Miguel Sousa Tavares
A prisão de José Sócrates garante à justiça que ele vai continuar sem nenhum direito de defesa. O que passa para a opinião pública é que isto deve ser gravíssimo.

Mas sem direito de defesa porquê? A lei não está a ser cumprida? Os advogados queixaram-se?

Quando um juiz vai deter um arguido, o prende durante vários dias, estamos perante um abuso.

Mas o juiz foi prendê-lo? Mas não foi interrogado nos três dias – durante 13 horas? É abuso questionar?

Sabia, claro que sabia que ia ser detido. A partir do momento em que os outros são detidos, claro que sabia.

(no comments)

Você na melhor das hipóteses daqui a três anos vai ter uma sentença transitada em julgado. Até lá, você destruiu a vida de quatro pessoas, que são irrecuperáveis. Há aqui coisas que são irreparáveis.

Talvez pudéssemos fazer assim: a investigação decorria em sigilo, não se perguntava nada, depois alguém ligava ao suspeito e dizia-lhe: olhe, o meu amigo foi ontem julgado por corrupção e foi considerado culpado.

Eu se fosse advogado vinha cá para fora e dizia tudo.

Epá, que pena o Miguel não ser advogado deles.

Chegado aqui
Percebi que não valia a pena ter grandes expectativas de racionalidade nesta discussão – pobre do Pacheco Pereira, que bem ia tentando dizer que tudo aquilo seria discutível, mas que antes se devia falar do primeiro primeiro-ministro suspeito de corrupção e branqueamento do país.

Não, Sócrates não é culpado, é suspeito. Não, a investigação não está imune a críticas, mas não é ela a criminosa. Talvez um dia consigamos ter uma conversa racional sobre José Sócrates, as suspeitas que recaem sobre ele e até sobre as políticas que praticou. Não será, porém, com base em pressupostos destes: dele eu gosto, do outro não. Será que vamos passar todos estes longos meses assim?

No mundo ideal, as imagens de Sócrates a sair do aeroporto não tinham acontecido, num mundo ideal um interrogatório desta complexidade era despachado numa hora, num mundo ideal não havia violação do segredo de justiça. Sim, claro. Mas convém dizer isto também: num mundo ideal não havia corrupção. Ou, pelo menos, quem está a investigar casos destes não seja mais suspeito do que o suspeito. É só isto.
Título e Texto: David Dinis, Observador, 25-11-2104

Rui Ribeiro
25 Nov 2014
Muito bem, David Dinis, completamente de acordo.

A intervenção de Sousa Tavares e de Ferreira Alves, mas especialmente desta, foi ainda pior do que o que aqui foi reflectido. Eu não sei o que faz Clara Ferreira Alves, mas o que ela disse e que tenha tido acolhimento num canal responsável como a SIC Notícias, foi transportar um discurso pior do que uma conversa de café, com um nível ainda mais baixo, para um canal de dimensão nacional.

Por natureza, até sou capaz de apreciar opiniões contra a corrente, mas é preciso que essas opiniões atinjam um mínimo de razoabilidade, que façam algum sentido, mesmo quando não concordamos com elas. Que a Clara Ferreira Alves pense, em frente ao espelho, que ela seria muito mais qualificada para avaliar um qualquer caso em julgamento, ainda vá, agora ter de ver a senhora, num canal nacional, a questionar, sem fundamentos legais ou processuais, a capacidade de um juiz experiente, eventualmente um dos mais experientes neste tipo de casos, é absolutamento surreal. A senhora não tem o sentido do rídiculo, mas a culpa é de quem lhe abre a antena.

Sobre Sousa Tavares, confesso que há alguns anos atrás ainda tinha algum respeito pelo que era capaz de dizer. Hoje não tenho pachorra. É, dos comentadores habituais das TVs, o típico tudologista, mal informado, arrogante, com um conhecimento absolutamente datado e típico de certos círculos bem pensantes, mas mal informados. Ontem fez uma bela parelha com a Ferreira Alves.

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Um comentário:

  1. David Dinis deve ter ficado muito puto ao ouvir as sandices desses "comentadores"... percebe-se.

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