Helena Matos
O legislador, na senda iluminista de levar ao povo a revolução que não
escolheu, criou o dependentismo, com programa em três pontos: Para mim, deveres
poucos ou nenhuns. Direitos todos. Amanhã logo se vê.
Nem liberalismo, nem
socialismo. A ideologia mais popular na Europa actualmente é o dependentismo. O
que é o dependentismo?
Antes de explicar o que é
o dependentismo deixem-me que lhes conte a história de Sandra. Ou de
Sabrina. Ou de Sofia. Nomes falsos por que a história verdadeira de uma jovem
espanhola chegou recentemente aos jornais: de cima dos seus quase trinta
aninhos, a nossa jovem acabou de conseguir que um tribunal obrigue o seu pai a
pagar-lhe uma bem simpática mesada durante mais dois anos. Com a possibilidade
de esse período ser alargado caso a dita jovem não consiga terminar até lá a
licenciatura em psicologia que iniciou há largo tempo. A nossa jovem, ou melhor
dizendo a nossa adulta que se recusa a deixar de ter vida de adolescente, é
saudável, nasceu na classe média e nada a não ser a sua vontade ou falta dela a
impediu de terminar o curso em seu devido tempo. Mas o tribunal que julgou
a sua acção contra o pai considera que hoje em dia é penosa a integração dos
jovens no mercado de trabalho.
Qual Podemos de Pablo Iglesias ou Frente
Nacional de Marine Le Pen, o nosso verdadeiro terramoto político está nas
mãos destes cidadãos nascidos nos anos 80 e 90 do século passado. Ao contrário
das gerações anteriores que queriam ser independentes, estes jovens que há
alguns anos seriam adultos lutam para ser materialmente dependentes. Por agora
exigem aos pais que os sustentem. Amanhã exigirão a mesada a quem? Não são
doentes e a avaliar pelas mesadas que reivindicam em tribunal não provêm de
meios pobres. São oficialmente estudantes embora da maior parte não se possa
dizer que estuda de forma regular. Alegam que não conseguem encontrar trabalho
compatível com as habilitações de que se acham munidos e enquanto não cair do
céu o lugar para que se acham dotados consideram que os pais têm de os
sustentar nessa condição de estudantes mesmo que ocasionais.
A isto junta-se que a lei é
omissa no que respeita ao limite de idade para se viver de uma mesada paterna
pelo que não é de estranhar que dentro de alguns anos tenhamos quarentões neste
grupo de indignados.
Quase sem darmos por isso, o
legislador imaginou-se “grande educador” e instalou-se na relação que pais e
filhos mantêm. E agora os tribunais sentem-se competentes para dizer a um pai
que tem de sustentar um filho que é maior para tudo menos para trabalhar.
Criámos leis e direitos contraditórios entre si e sem qualquer adesão à
realidade: os mesmos pais a quem os tribunais, sobretudo em Espanha, criam a
responsabilidade de continuar a sustentar filhos de 30 anos, apesar de estes
serem saudáveis, são os mesmos pais a quem esses filhos já não ajudaram nas
mais prosaicas tarefas domésticas porque havia o risco de tal ser considerado
trabalho infantil.
A desautorização das famílias
criou monstros legais como a britânica Cinderella Law que visa criminalizar a
falta de manifestações de afecto dos pais para com os filhos, o que permite
todo o tipo de arbítrios e subjectividades. Ou as chamadas “leis da palmada”
que, visando combater os maus tratos às crianças, optam não por prevenir esses
maus tratos, nomeadamente através de um acompanhamento mais eficaz das crianças
que se suspeita poderem ser vítimas deles, mas sim por transformar a mais
simples repreensão num caso de polícia.
Toda esta parafernália
legislativa dos últimos anos, em que o Estado se assume como um bom educador
por oposição às famílias, sempre vistas como ignorantes, não protegeu mais as
crianças que precisavam de ser protegidas daqueles pais que excepcionalmente as
maltratam. Mas acabou claramente a desautorizar a generalidade dos pais, ou
seja, aqueles que se esforçam por tratar o melhor possível os seus filhos.
Há algo de disfuncional na
relação que se criou com esta geração que em vários países europeus vai ao
médico pediatra até aos 18 anos, mas que pode abortar a partir dos 16 sem que
os seus pais sejam sequer informados. Mas se isto é válido para a perspectiva
dos pais, ou se quisermos das gerações mais velhas, do ponto de vista dos
filhos o resultado é bem mais complexo: criados numa concepção de direito a
isto e àquilo, foram imbuídos de que o simples acto de nascer os revestia de
vários direitos materiais.
Quanto a deveres, a simples
enunciação desta palavra podia causar-lhes traumas vários. Enfim, desde que não
se drogassem e fossem cumprindo as etapas da vida escolar já reuniam os
requisitos básicos para serem considerados exemplares. Agora muitos já nem esse
mínimo se sentem obrigados a cumprir e, quando se esperaria que, pelo menos uma
vez adultos, trabalhassem, antes pelo contrário seguem para tribunal
reivindicando que os pais os continuem a sustentar. E o legislador, sempre na
senda iluminista de levar por força de lei o povo a viver a revolução que não
escolheu, vai avalizando os argumentos do dependentismo.
O dependentismo, ou seja a
convicção de que os nossos direitos materiais têm de ser garantidos
independentemente da possibilidade de serem custeados ou de representarem um
abuso sobre aqueles que têm de os custear, é hoje a ideologia mais popular na
Europa.
Visto assim sob a perspectiva
de uns meninos quase trintões que querem continuar no seu viver de estudante –
se fosse agora, as tias do Vasquinho acabavam condenadas em tribunal e ele
nunca dissertaria sobre o mastoideu no exame de Anatomia – é fácil
caricaturizar o dependentismo. Mas pensemos na recente greve dos pilotos da Air
France, na resistência às reformas empreendidas pelos governos italiano e
belga, na língua de pau do Tribunal Constitucional em Portugal e confrontamo-nos
com versões institucionais do dependentismo, essa ideologia cujo programa se
resume a três pontos: “Para mim, deveres poucos ou nenhuns. Direitos todos.
Amanhã logo se vê.”
Parece uma coisa de crianças e
em parte é. Afinal o dependentismo infantilizou os europeus. Estes, sempre tão
disponíveis para se deixarem enlevar por tudo aquilo que lhe parecesse uma vaga
alternativa às suas democracias, não ficaram mais realistas após a queda do
Muro de Berlim. Antes pelo contrário, os vendedores de utopias que por aí andam
agora nem têm de se confrontar com o falhanço dos modelos alternativos.Valha a
verdade eles também não defendem propriamente modelos alternativos de sociedade
ou quando os defendem escondem-nos o suficiente porque sabem que ninguém
quereria viver em tal inferno.
O que os infantilizados
eleitores europeus querem não se distingue muito das exigências de mais mesada
dos trintões espanhóis: afinal todos querem mais algum tempo de recreio. Se
pudessem diziam como as crianças quando dantes brincavam na rua e as chamavam
para ir jantar: “Já vou. Só mais um bocadinho!
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