Desidério Murcho
Todo o dogma é uma crença, mas
nem toda a crença é um dogma. Uma crença é qualquer representação, susceptível
de ter valor de verdade, que um agente cognitivo faz das coisas.
Todos cremos, por exemplo, que
Hitler existiu e que a água nos mata a sede. Toda a fé é uma crença, mas nem
toda a crença é uma fé. A fé é uma crença especificamente religiosa, e, como os
dogmas, poderá ter outros elementos além dos puramente epistémicos.
Os dogmas têm uma componente
epistémica e uma componente psicológica, e caracterizam-se pela relação pouco
recomendável existente entre ambas. A componente epistémica do dogma é ser uma
crença que a pessoa que a tem é incapaz de justificar adequadamente; a
componente psicológica é uma forte adesão, emocional ou pessoal, a essa crença.
Uma pessoa é tanto mais dogmática quanto maior discrepância existir entre a
força das razões ou justificações de que dispõe a favor de uma dada crença e a
força da sua adesão.
Todos temos inúmeras crenças
injustificadas ou inadequadamente justificadas, pela simples razão de que
nenhum de nós pode analisar cuidadosamente todas as suas crenças. Assim, no que
respeita à justificação de crenças, é inevitável uma certa distribuição do
trabalho intelectual. Eu creio que a água é H2O, mas a minha
justificação a favor desta crença, ainda que adequada, é secundária, no sentido
em que se baseia no que os cientistas afirmam. Apesar de eu não dispor de uma
justificação epistemicamente primeira para esta crença, não é um dogma para mim
porque não tenho em relação a ela um apego desproporcional: se amanhã eu ler
uma notícia na Nature declarando que vários cientistas confirmaram
que há um erro subtil que os fez pensar que a água era H2O quando na
realidade é outra coisa qualquer, não terei dificuldade em abandonar a minha
crença anterior.
Outras crenças injustificadas
ou inadequadamente justificadas são no entanto acompanhadas de uma forte
convicção, em tudo desproporcional relativamente às justificações disponíveis.
Entre essas crenças inclui-se alguns casos de crenças políticas, religiosas e
relativas a comportamentos sociais. São aqueles casos em que as pessoas
insistem tanto mais veementemente nas suas ideias quanto mais frágeis são as
razões que conseguem articular a favor delas.
Um dos dogmas contemporâneos
mais persistente, incluindo nas zonas mais anémicas da cultura académica, é o
que à primeira vista parece um metadogma: um dogma acerca de dogmas. Trata-se
do dogma de que devemos combater os dogmas. Não se trata realmente de um
metadogma porque alberga uma confusão quanto ao conceito de dogma. Apesar de
enganadoramente se falar em combater dogmas, trata-se na realidade de combater
ou defender certas ideias feitas, ao mesmo tempo que se rotula de dogmáticas,
sem qualquer justificação, as ideias contrárias.
Os exemplos são muitos, mas
vou mencionar apenas três.
O primeiro é a ideia de que
devemos tudo fazer para ter uma sociedade igualitária — sem que qualquer das
pessoas empenhadas em tal coisa faça a mínima ideia de como justificar a
opinião de que uma sociedade igualitária é melhor do que uma que não o seja. A
bibliografia sobre o tema é desprezada com a atitude típica dos ignorantes: é
como se não existisse.
O segundo exemplo é a ideia de
que toda a gente é culta, sendo proibido dizer que uma pessoa é inculta se não
sabe ler, não faz a mínima ideia do que é o Sol nem que existe um sistema
solar, e nem sequer tem noção da dimensão do planeta Terra nem da história da
humanidade. Deste singular ponto de vista, toda a gente é culta porque ter
cultura é ter costumes: uma manobra semântica mais ou menos equivalente a dizer
que toda a gente é rica porque “rico” passou a querer dizer “digno de
consideração e respeito.”
O terceiro é o dogma
ecológico: a ideia de que “o planeta está doente” (notável expressão), sem que
no entanto se faça a mais pálida ideia dos indícios a favor de tal coisa, até
porque nem sequer se sabe consultar documentos científicos sobre o estado
ecológico do planeta, além de nada se saber da história da humanidade nem do
planeta; de modo que não se sabe sequer se o planeta está hoje mais ou menos
“doente” do que, digamos, há três mil anos.
Todos estes casos, e muitos
outros, são exemplos de dogmas. Não porque as ideias veementemente afirmadas
sejam falsas — penso que algumas são verdadeiras — mas apenas porque quem as
afirma tão veementemente não dispõe de justificações adequadas para pensar que
são verdadeiras. Na verdade, quem as afirma tão veementemente tem como
principal objectivo silenciar quem pensa o contrário e portanto impedir a
discussão ponderada das razões a favor e contra as suas ideias preferidas. A
ideia é que é arriscado levar a sério a hipótese de estarem erradas as ideias
feitas que aceitamos sem razões, pois poderemos descobrir que estão mesmo
erradas. Deveria ser desnecessário dizer que, no mínimo, esta atitude está
longe de ser epistemicamente virtuosa.
Assim, sob a aparência de se
estar a combater dogmas, afirma-se ideias a favor das quais as pessoas que as
defendem não dispõem de justificações minimamente adequadas — até porque se
trata de pessoas cuja mundividência é na sua quase totalidade formada pelo que
ouvem dizer na rua e pelo que vêem na televisão. Combater dogmas torna-se assim
um dogma: uma atitude impensada e veemente, a favor da qual o combatente não
tem qualquer justificação ponderada, articulada e adequada. Mas não é realmente
um metadogma porque em muitos casos o que se combate não são dogmas; são apenas
ideias de que não se gosta porque se foi cegamente treinado para isso pelos
meios de comunicação, por sistemas educativos deficientes e por autores
bombásticos mas falhos de raciocínio cuidadoso e articulado.
A palavra portuguesa “dogma” é
de origem grega. Originalmente, o termo era próximo de dokein, que
significa parecer. Um dogma era apenas algo que parecia verdadeiro. O termo foi
usado por alguns filósofos cépticos, porém, para descrever os filósofos que
defendiam teorias sobre vários assuntos, ao invés de argumentarem
infindavelmente a favor da impossibilidade de se saber seja o que for, como os
próprios cépticos faziam. Deste modo, e segundo essa classificação, filósofos
perfeitamente antidogmáticos, como Aristóteles, são considerados dogmáticos
nessa enganadora terminologia. O uso do termo neste sentido grego ocorria ainda
no séc. XVIII em alguns textos de Kant, o que hoje provoca confusão — pois
parece que a única maneira de não se ser dogmático é parar de estudar as coisas
e ser céptico. Para não fazer confusões é preciso não esquecer que o termo
“dogmático,” tal como era usado por Kant ou pelos cépticos gregos, nada tem a
ver com o sentido popular actual do termo.
Não sei se esta confusão
terminológica está na origem da ilusão de que ser antidogmático é ser do
contra. Assim, se uma pessoa vive numa sociedade maioritariamente cristã, ser
antidogmático seria, deste ponto de vista, declarar a morte de Deus. Que isto é
uma ilusão deveria ser óbvio: pois uma pessoa que acredita em Deus pode não ser
dogmática se tiver justificações adequadas para isso e não aderir
desproporcionalmente à sua crença; e uma pessoa ateia pode ser dogmática se não
tiver justificações adequadas para isso, ao mesmo tempo que adere veementemente
ao seu ateísmo, como parece o caso de Nietzsche. Em particular, alguém que
nunca estudou detidamente os argumentos contra e a favor da existência de Deus,
e que nunca justificou a sua descrença, poderá ser bastante mais dogmático
quanto à inexistência de Deus do que Tomás de Aquino era quanto à sua
existência — porque este tem vários argumentos bem pensados a favor da existência
de Deus.
Na história da humanidade, a
origem de muitas das suas desgraças não está apenas na imoralidade elementar e
infantil de considerar que os meus interesses, por serem meus, são mais
importantes do que os dos outros. É defensável que a ignorância, a falta de
ponderação e a pura tolice estão em pé de igualdade como causas das misérias
humanas. Assim, fingir que se luta contra os dogmas quando na realidade se
cultiva a expressão imediatista de sentires imponderados é duplamente perverso:
por um lado, porque toda a atitude falha de ponderação, estudo e argumentação
cuidadosa é um passo na direcção da miséria humana; por outro, porque bloqueia
a verdadeira luta contra os dogmas, que é precisamente o oposto da afirmação de
sonoros slogans publicitários, tantas vezes disfarçados de
aforismos supostamente profundos. A única maneira de real e honestamente lutar
contra os dogmas é cultivar a análise cuidadosa de ideias, a argumentação
ponderada e a teorização pormenorizada; toda a suposta luta contra os dogmas
incompatível com isto é pura mentira.
Uma das características
capitais da fé de Abraão — ainda que talvez não de todas as fés — é tratar-se
de uma atitude que tem no seu próprio seio mecanismos para impedir a dúvida e
portanto a possibilidade de defecção. Em sociedades muito inseguras, em que a
mortalidade infantil é altíssima, a fome e a doença são intermitentes e uma
pessoa com 45 anos é uma anciã, se tiver a sorte de lá chegar, é algo arriscado
não crer num Deus que, segundo os seus prosélitos, castiga quem nele não crê. A
aposta de Pascal é neste caso clara: mais vale crer, não vá o diabo — ou Deus —
tecê-las. E para crer é preciso crer com muita convicção e sinceridade, caso
contrário podemos ser apanhados em falso. Isto tem o efeito real de a simples
hipótese de deixar de crer em Deus aterrorizar a pessoa de sociedades muito
inseguras — pois as consequências podem ser muito graves. Torna-se um obstáculo
epistemológico ao combate ao dogma, pois mesmo que nenhuma boa razão a pessoa
tenha para crer que Deus existe, inibe-se obviamente de ponderar cuidadosamente
as razões e de adaptar a força das suas convicções aos argumentos disponíveis.
A imagem paralela desta
situação é a circunstância epistémica em que ficam muitas pessoas depois de ler
filósofos supostamente antidogmáticos. Porque esses filósofos instilam uma
desconfiança na “razão” — leia-se: análise cuidadosa de argumentos, teorização
paciente e minuciosa e consideração de alternativas — tornam-se obstáculos
epistemológicos à luta contra os dogmas. Pois não há outra maneira de lutar
contra os dogmas a não ser usando a razão, e é preciso usá-la cuidadosamente,
porque somos falíveis e cometemos erros. Frases feitas, aforismos bombásticos e
rendilhados frásicos inspiradores não servem senão para impedir a análise
cuidadosa de ideias e argumentos. A sedução retórica impede o pensamento
crítico com bastante mais eficácia do que o édito papal ou o Santo Ofício.
Lutar contra dogmas não é
afirmar as ideias em que já cremos. Lutar contra dogmas é, antes de mais,
aprender, e depois ensinar, a pensar rigorosamente, a argumentar com
proficiência, a teorizar minuciosamente e com precisão. Tudo isto implica
estudo, conhecimento das bibliografias, esforço e honestidade intelectual. Não
é, pois, mais fácil nem mais atraente, à primeira vista, do que a imagem do
rebelde social que debitaslogans sonoros. Mas é muitíssimo mais
promissor — e tem a vantagem não negligenciável de não ser uma mentira.
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