Rui Ramos
Sócrates, o seu governo, a sua
influência começam a justificar mais do que uma série de artigos de jornal ou
processos parcelares: o regime tem de confrontar directamente este fantasma.
Lemos o Correio da Manhã, e
espantamo-nos. Menos com o Correio da Manhã, do que com o silêncio acerca do
que o jornal desvendou nas
suas últimas edições. Trata-se, mais de uma vez, de José Sócrates. O
ex-primeiro ministro já foi acusado publicamente – e convém sublinhar o
publicamente – de conluios, cumplicidades e alinhamentos com banqueiros,
empresários e magistrados para, enquanto governante, se apoderar de bancos
(como o BCP), decidir grandes negócios (como a OPA da Sonae à PT), condicionar a comunicação social (no
caso da TVI-Media Capital), e limitar a justiça (no processo Face Oculta). Tudo foi comentado e analisado a seu tempo
(por exemplo, aqui). O Correio da Manhã envolve-o agora numa operação, já
depois da saída do governo, para tomar conta de uma parte importante da
comunicação social portuguesa (através do domínio da Controlinveste, TVI, e
PT).
Num editorial dramático, o
jornal descreve mais este capítulo da saga socrática como uma “grave ameaça
sobre a liberdade de expressão e de imprensa”, e chama-lhe um “novo atentado ao Estado de Direito”, recuperando a
expressão do procurador João Marques Vidal no seu célebre despacho de 23 de Junho de 2009. E de facto,
tudo o que é revelado no Correio da Manhã, mais o que consta há muito tempo,
configura não só um padrão de actuação, mas uma filosofia: a de alguém para
quem o essencial da política não é persuadir os cidadãos e debater com os
adversários, como nas democracias, mas acumular meios de controle, manipulação
e impunidade, como nas ditaduras.
Perante tudo isto, não basta
tratar o Correio da Manhã como um jornal “sensacionalista”, e confundir estas
notícias com as revelações sobre o fim do namoro do Ronaldo, de que não se fala
nos salões bem-pensantes. Também não basta dizer que há uma investigação
judicial a decorrer, e que não se pode tomar conhecimento do que transpira na
imprensa. O regime tem a obrigação de esclarecer se o que corre sobre alguém
que liderou um dos maiores partidos portugueses e governou este país durante
seis anos – e que, no que é politicamente relevante, vai muito para além da
chamada “Operação Marquês” – é ou não é verdade.
Se for verdade, teremos de
reconhecer que a democracia portuguesa enfrentou uma verdadeira conspiração a
partir do poder, e que só a crise financeira de 2010-2011, ao arruinar o
socratismo, poupou o regime ao domínio de uma facção sem escrúpulos e à
confrontação política que fatalmente resultaria desse domínio. Desde há 40
anos, ensinaram-nos a reconhecer um golpe de Estado: o parlamento fechado com
tanques à porta, e um general de óculos escuros, na televisão, a anunciar a
proibição dos partidos e a censura à imprensa. Ninguém nos preparou para outra
hipótese: a degradação por dentro do próprio regime, através de combinações
entre os oligarcas para diminuir de facto a liberdade e a transparência da vida
pública.
E se não for verdade, se
Sócrates nunca quis conquistar bancos, se nunca fez negócios, se jamais
influenciou magistrados, e se era alheio a quaisquer manobras na comunicação
social – para além de inocente dos crimes de que é actualmente arguido –, então
valerá a pena examinar como é que, a partir dos tribunais e da imprensa, foi
montada esta mistificação sinistra, que fez um político democrático e honesto
parecer um émulo do Catilina de Cícero.
Por enquanto, este é um
atentado à portuguesa, que aconteceu ou não aconteceu conforme as opiniões. Mas
vai sendo tempo de avançarmos para além das “narrativas”. As narrativas servem
apenas para cada facção dar estrutura aos seus preconceitos e demonizar os
adversários: Sócrates foi um corrupto, que governou com o único objectivo de
roubar; Sócrates foi um grande líder reformista, que está a ser perseguido
pelos juízes a quem tirou uns dias de férias. Deixemos isto para socráticos e
anti-socráticos. Precisamos de factos. É uma urgência nacional.
O trabalho dos jornalistas e
dos magistrados é fundamental. Mas José Sócrates, o seu governo, a sua
influência e a sua reputação começam a justificar mais do que uma série de
artigos de jornal ou processos judiciais parcelares: o regime tem de confrontar
directamente este fantasma, e um dos meios para o fazer é um inquérito
parlamentar, em que todos os que tenham algo a dizer sejam formalmente
questionados. O que se passou em Portugal, ou melhor: o que se está a passar em
Portugal? Se não tivermos uma resposta, a pergunta ficará respondida da pior
maneira.
Título e Texto: Rui Ramos, Observador, 19-1-2015
Título e Texto: Rui Ramos, Observador, 19-1-2015
Presidente da ERC queria que regulador tivesse sido mais duro com o Correio da Manhã no caso Sócrates
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