Maria Fátima Bonifácio
Do Syriza, convertido em
bezerro de ouro da esquerda, a Europa ainda só recebeu, até agora, arrogância e
provocação, uma estratégia estúpida cuja pretensa esperteza não escapa a
ninguém.
Sempre pensei que o
Liberalismo assentava (entre outros) no pressuposto de que as pessoas, em
última análise, eram racionais e responsáveis. Claro que as emoções, as
paixões, a aflição, o desespero abrem grandes intervalos nesse meu suposto
estado de fundamental lucidez. Mas, passadas essas perturbações, acabaríamos
todos, ou quase todos, por ser chamados à razão. Não no sentido de reconhecer a
Verdade, um exercício mais apropriado para filósofos ou teólogos, mas de se
admitir a evidência dos factos duros e retirar deles, racionalmente,
logicamente, as ilações que se impõem. A nossa vida, tal como a História, está
cheia de momentos de irracionalidade. Mas, tudo somado, olhando
retrospectivamente, prevalece em geral um padrão coerente e inteligível. E
mesmo os disparates, no caso de indivíduos, e as tragédias, no caso da
História, são em última análise susceptíveis de um escrutínio e explicação
racionais.
Com excepções, contudo, como
acontece nas situações radicalmente absurdas. A minha crença nos mencionados
pressupostos do Liberalismo foi logo abalada durante o ominoso consulado de
José Sócrates, quando Portugal se assemelhava a um automóvel a acelerar com
toda a força contra um paredão. E mais abalada ficou quando acordámos para a
realidade de que a Dívida privada (de empresas e particulares) superava a
gigantesca Dívida Pública. Era “o tempo das duas casas e das três
auto-estradas” (R. Ramos). Se as três auto-estradas acabaram por ser levadas a
crédito da irresponsabilidade do nosso governante, a culpa das duas casas foi,
e continua a ser, atribuída à malícia dos Bancos e aos efeitos nefastos do
euro, que graças aos baixos juros permitia viver folgadamente da dívida.
Responsabilidade pessoal? Não houve. Somos um país de crianças grandes
inimputáveis.
O Syriza justifica as suas
fanfarronadas com os votos democráticos e soberanos que recebeu do povo grego
(mais os 50 deputados que a absurda lei eleitoral oferece de borla ao partido
mais votado). A crise humanitária pela qual a Grécia efectivamente está a
passar, causada pelo tratamento draconiano que recebeu da Troika, foi precedida
pelo predomínio incontestado de duas dinastias de políticos corruptos que
durante décadas saquearam o país, acabando por obrigar a mendigar ajuda externa
para evitar, por um fio, a bancarrota.
Ora, enquanto os Karamanlis
(falecido em 1998) e os Papandreous arruinavam o país, os gregos colaboravam
alegremente: poderiam ter corrido com eles com um voto tão democrático e soberano
como deram agora ao Syriza, até votando massivamente nulo ou em branco se não
entrevissem alternativa credível. Porém, nenhum grego estranhava os
extraordinários privilégios de que gozava e de que nem os cidadãos das nações
mais ricas da Europa usufruíam. Não só: em lado nenhum da Europa a evasão
fiscal era tão sistemática e escandalosa, praticada de cima abaixo da escala
social. Enquanto a fartura durou, toda a gente colaborou no saque do país e
beneficiou dele, ao mesmo tempo que o enterrava descontraidamente. A revolta e
o fervor patriótico só irromperam quando, subitamente, os gregos se viram
confrontados com a duríssima realidade. Não, os gregos não elegeram o Syriza
por causa da Europa, do BCE ou da Troika, elegeram o Syriza porque este lhes prometeu
ressuscitar o sonho de fadas em que se tinham habituado a viver, poupando-os à
realidade e devolvendo-lhes a irresponsabilidade em que descansadamente viviam
e dormiam. Pessoalmente, não me sinto inclinada a contribuir com os meus
“cortes” e impostos para financiar a negligência e o desmazelo da Grécia.
Do Syriza, convertido em
bezerro de ouro da esquerda, a Europa ainda só recebeu, até agora, arrogância e
provocação, uma estratégia estúpida cuja pretensa esperteza não escapa a
ninguém. A filáucia de Varoufakis, ministro grego das Finanças, destina-se a
testar os limites da condescendência europeia; a dispensa da gravata pelo
primeiro-ministro Tsipras não passa de uma demonstração infantil de
irreverência e rebeldia; a aliança com um partido de direita anti-europeu foi
mais um desafio desnecessário; o apoio manifestado à agressão criminosa da
Rússia na Ucrânia ou é sincera e por isso lamentável, ou não passa de mais uma
farronca pseudo-nacionalista que renega os deveres de um país-membro da NATO; a
elevação do salário mínimo para 720 euros constitui uma afronta para os muitos
e muitos europeus excluídos de uma tal benesse; a readmissão nos quadros da
Função Pública de 600 (!) empregadas para limpar o ministério das Finanças
inscreve-se na mesma política de esbanjamento que antes da Troika mantinha 27
jardineiros (!) entretidos a fingir que cuidavam de um jardim com um hectare. A
listagem dos casos mais escandalosos pode ser lida no artigo de Sousa Tavares
no Expresso de sábado, 31 de Janeiro (embora o colunista retire conclusões
opostas às minhas).
Há quem veja no “caso grego”
uma oportunidade para forçar a Europa a flexibilizar as suas regras e
políticas. Mas a Grécia não quer uma mera flexibilização, quer, com 10 milhões
de habitantes e os cofres vazios, ditar ela as regras e políticas de uma União
que alberga cerca de 500 milhões de pessoas. Ocorre-me o ditado – entradas de
leão, saídas de cão. Esperemos apesar de tudo, por razões meramente
humanitárias, que a Europa não queira, e possa não querer, transformar o caso
grego numa “vacina” contra a veleidade de acreditar no Pai Natal. Não tardará
que tenhamos a oportunidade de confirmar se ele afinal existe ou não realmente.
Há quem diga, como MST, que
uma “capitulação” da Grécia forçada por Berlim detonaria na Europa uma onda de
ódio anti-germânico e a ebulição das frustrações em relação a Bruxelas; e que
neste caso se poderá antever a próxima dissolução da UE. Pode ser. É um facto
que o ódio e a frustração já existem, mas não acredito que se agravassem. Mas,
dada a despropositada arrogância de um país falido cujos principais problemas
não começaram sequer a ser resolvidos apesar de dois resgates e um mais que
generoso perdão de metade da Dívida; dadas as provocações com que o Syriza
entendeu por bem desafiar aqueles de quem precisa, o problema, o dilacerante
problema a que chegámos está em que desapareceu qualquer espaço para uma
negociação em que ninguém perca a face. Graças ao gabado talento político de
Tsipras, a Europa está colocada perante o dilema entre deixar cair a Grécia ou
sofrer uma miserável humilhação. E neste segundo caso teríamos, não a tal onda
de ódio, mas uma onda de reivindicações e exigências dos países em dificuldades
que, a serem satisfeitas, igualmente preludiariam o fim da Europa num futuro
muito próximo. No ponto em que o Syriza colocou as coisas, uma das partes terá
fatalmente de capitular – ou a Grécia terá de sair da Europa pelo seu pé.
Talvez a Rússia, a título de mais um passo na renovada Guerra Fria, lhe sirva
de amparo.
Se a Europa se rendesse à
chantagem, como se contornaria o precedente grego? O que justificaria a
excepção de um tratamento privilegiado? Com o exemplo seminal de Péricles e da
Democracia Ateniense? Mas Péricles e a Democracia Ateniense estão tão longe dos
gregos e da Grécia actual como nós estamos dos Incas ou dos Astecas dizimados
por Cortês e Pizarro. Mas ainda que o simbolismo tivesse cabimento, teríamos de
concluir que os gregos não honraram a herança que receberam.
A UE, ao longo da sua
formação, acumulou erros sobre erros. A perspectiva de uma federalização
parece-me completamente utópica. Ignoro se há outras opções a explorar. O certo
é que foi construída em comum, e em comum se deve reformar, se reforma tiver. O
que não pode é alterar regras ao sabor de ultimatos vindos de alguém que, por
ora, não passa de um aventureiro com pretensões e ambições absurdas, daquelas
que escapam a um entendimento racional. Mas isto já é outro assunto.
Por falar em aventureiros, bem que Maria Fátima Bonifácio, poderia escrever algo tão ilustre sobre o Brasil.
ResponderExcluirAs similaridades com o que irá acontecer por aqui e a Grécia , são de uma previsibilidade assustadora.
Como ela mesmo diz no início, do texto, sempre pensou que as pessoas em última análise fossem racionais e responsáveis. Não são, e as verdades não demoram a aflorar.
José manuel