segunda-feira, 16 de fevereiro de 2015

Os sacanóides dos alemães

LR
Nos últimos dias, logo após a divulgação pelo INE dos números do comércio externo de bens relativos a 2014, a nossa imprensa foi debitando um chorrilho de barbaridades, numa mescla de ignorância alarve com o habitual primarismo anti-germânico.

roubo do crescimento foi a “cereja no bolo” numa variedade de artigos e “análises”, todos imputando à Alemanha a responsabilidade (exclusiva?) pelo agravamento do défice de mercadorias. Que me recorde, ninguém atribuiu o mínimo efeito ao tão desejado, incensado e salvífico aumento da procura interna. Desde que a Alemanha apareça como “parte activa” do negócio, não há vilania que não se lhe impute. Então se for “ganhadora”, é certo e sabido que estamos perante um crime de lesa-humanidade.


Não pretendo incutir em mentalidades mercantilistas que o comércio internacional é um jogo de soma positiva e que os seus ganhos não se medem pela natureza do saldo. Questões de fé são sempre inexpugnáveis perante as evidências mais cristalinas. Mas conviria ter alguma noção da relatividade quando se lançam tiradas imbecis como a dos ganhos da Alemanha com o Euro ou até com a “imensidão” do que exporta para Portugal.

Há muito de ficcional quando se afirma que o comércio externo alemão vive da zona Euro. Na realidade, as exportações alemãs têm uma enorme diversificação por países e a “Zona Euro” tem vindo a perder peso na respectiva estrutura, como é visível no gráfico acima. Em 2014 representou apenas 36,5% do total das exportações, uma queda de mais de 6 pontos percentuais nos últimos 5 anos. E perde quer para outros países da UE, quer sobretudo para o resto do mundo, que vê o seu peso subir de 37% em 2010 para 42% em 2014. Mas se a Alemanha exporta cada vez menos para a Zona Euro, importa dela cada vez mais, mantendo-se aquela Zona como o seu principal fornecedor, com um peso do ordem dos 45%, que se vem mantendo estável ao longo dos anos.

Daqui decorre que o saldo comercial com a Zona Euro, que nunca foi significativo, tem-se vindo a esbater, estando actualmente as trocas praticamente equilibradas. Aliás, o colossal excedente comercial germânico provém fundamentalmente do resto do mundo (74%) e dos outros países da UE (25%), para o que contribui em grande medida o Reino Unido. Ou seja, saldo equilibrado com a Eurozona e um enorme “roubo de crescimento” ao resto do mundo, que inclui toda a panóplia de “exploradores asiáticos” para quem os “direitos sociais” são letra morta. E ainda há quem diabolize o excedente alemão…

Outra imbecilidade muito recorrente é que a Alemanha tem singrado na vida à nossa custa e de outros periféricos. Não fosse a catadupa de Mercedes e BMWs que nos “obrigam” a comprar-lhes e bem teriam de amargar com as agruras de um défice. Este é um dos exemplos típicos de inumeracia que por aí grassa e a que nem sequer a imprensa dita económica é imune.

Há efectivamente uma grande incapacidade de olhar para as grandezas em termos relativos. A Alemanha exportou em 2014 1,1 trilião de euros (visto na lógica americana, ou seja, 1,1 milhão de milhões), quase 7 vezes o PIB português. Daquele valor mastodôntico, destinaram-se a Portugal 7,2 bi, cerca de 0,6% do total. Pretender-se que isto é relevante para as exportações alemãs, é de um ridículo atroz. Na hipótese de fecharmos o nosso mercado a produtos alemães – e desgraçados dos nossos industriais, que deixariam de usufruir de equipamentos topo de gama – estaríamos perante a mordida de uma formiga num elefante. Qualquer pequeno forcing comercial nos mercados americano ou chinês mais do que compensaria aquela perda. Mas se os alemães quisessem retaliar, amputar-nos-iam de quase 12% das nossas exportações que, nas suas importações, pesam os mesmos míseros 0,6%. 

E de realçar que, nem só dos automóveis vivem as exportações alemãs. Emparceirando com eles, estão máquinas e equipamentos, um must em qualquer indústria deste mundo que se pretenda competitiva. E, mais abaixo, produtos químicos e farmacêuticos, produtos de óptica e electrónicos, equipamento eléctrico e até bens alimentares, todos com a garantia de qualidade e robustez conferido pelo made in Germany.

O nosso saldo de mercadorias com a Alemanha de facto degradou-se em 2014. E teve a ver com acréscimo de importação de automóveis – mas aqui a “culpa” é do TC, a quem cabe em exclusivo o mérito da retoma da procura interna, certo? – e com alguma retoma do investimento (extra construção) que se vem verificando desde o 2º trimestre de 2013. Quando adicionarmos os serviços (valores ainda não conhecidos), a nossa balança comercial com a Alemanha andará perto do equilíbrio. Recorde-se que, em 2012 e 2013, registámos excedentes na ordem dos 270 milhões cada ano.

E se olharmos para outro periférico, a “minúscula” Irlanda, esta apresentou em 2014 um excedente comercial com o gigante de 1,6 bi, facto que vem sendo recorrente ao longo dos últimos anos.

Em suma, é um erro considerarmos o excedente alemão como um malefício para os restantes países. Mais de metade provém do comércio com grandes economias (Estados Unidos, França e Reino Unido, por esta ordem) e muito do que adquire aos pequenos países representa inputs a incorporar nas suas exportações para os grandes mercados. Ou seja, uma degradação do seu excedente comercial, como muitos defendem, não virá em benefício dos países da periferia, bem pelo contrário. Mas mentes formatadas pelo preconceito são impenetráveis a esta lógica.
Título e Texto: LR, Blasfémias, 16-2-2015  

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