Gabriel Mithá Ribeiro
Não há filmes, romances,
ensaios, simples artigos de jornal fora dos lugares-comuns sobre o Estado Novo
que a saliva corrosiva da elite bem-pensante, a polícia do espírito, não tente
matar à nascença.
Fundamental nas sociedades não
é apenas o reforço continuado da liberdade de pensar, mas que ela incida no que
é verdadeiramente importante e, por essa razão, tende a permanecer latente,
recalcado, escondido, envergonhado, dissimulado. Expor o lado oculto que
sustenta as inevitáveis relações de poder de uns sobre outros permite melhorar
atitudes e comportamentos quotidianos que fazem a prosperidade dos povos. Neste
jogo, a diferença entre ricos e pobres torna-se irrelevante.
A austeridade constitui um
ponto bom de partida. Há várias gerações que os professores do ensino básico e
secundário ensinam que, a partir do século XVI e na sequência da reforma
protestante, espoletaram atitudes e comportamentos austeros, cujo impacto
cultural transformou a Holanda e a Inglaterra nas sociedades mais livres,
dinâmicas e prósperas da época, poder esse que acabaria por se projetar por
séculos.
No século XXI, em países com
tradições culturais muitíssimo mais frágeis, a poderosa elite bem-pensante tudo
faz para transformar o significado cultural da austeridade numa ‘coisa má’.
Todavia, enquanto referente orientador de atitudes e comportamentos
quotidianos, a austeridade pode ser a ‘coisa má’ e o seu contrário. Muito mais
o seu contrário conforme comprova qualquer manual básico de história. O sucesso
de tal elite significa, por isso, vivermos amarrados a um modelo cultural que
tem latente uma remota ancestralidade medieval paradoxalmente presente em
discursos dos que se autoproclamam progressistas anti-austeritários.
Os indivíduos, tal como as
sociedades, podem viver condicionadas por obsessões, paranoias, incapacidade de
lidar consigo mesmos. Esse estado favorece as fugas ao real e ao tempo presente
explicadas por Carlos Amaral Dias. O psicanalista refere que é bem mais
provável o indivíduo ser afetado por descompensações quando, perante um
conjunto de acontecimentos que o perturbam, fica aprisionado a interpretações
redutoras: “Bion diz que um paciente chega a análise com seis factos, cada um
com uma versão, e está verdadeiramente em análise no momento em que passa a ter
seis versões para cada facto – expandiu o campo da significação” (“Freud para
além de Freud”, 2000, p.147). A ultrapassagem do estado patológico está,
portanto, associada à relação bem mais fértil, fecunda e equilibrada do
indivíduo consigo mesmo, com os outros e com o mundo que o rodeia. É para isso
que serve o divã.
O princípio continua válido quando
se transita do indivíduo para o coletivo. Problemático é que as gerações passam
e a sociedade portuguesa (como outras) permanece tentada por uma forte pulsão
para seguir escolas ou doutrinas de pensamento único por responsabilidade das
suas elites intelectuais, académicas, políticas ou culturais, as que tutelam,
alimentam e condicionam o pensamento de senso comum. Neste particular, o 25 de
Abril de 1974 não mudou nada de substantivo.
Amadurecemos o suficiente para
saber que, por um lado, da história que está nos livros, o que mais pesa é o
sentido do decurso do tempo que passa para o senso comum e, por outro lado, as
relações de poder do presente são fundadas em interpretações seletivas do
passado. Estão sempre em causa núcleos traumáticos ou sensíveis da memória
coletiva em que as razões e as paixões são, ao mesmo tempo, contraditórias e
fortes. Por isso, não existe outro caminho de sanidade civilizacional que não
seja o da legitimação de diferentes versões sobre um mesmo fenómeno.
E não é qualquer tema ou
fenómeno histórico e social que importa. O que bloqueia um muito maior
dinamismo e renovação intelectual e cultural é o tipo de gestão social de
pouquíssimos mas significativos referentes-chave. Entre os portugueses são o
Estado Novo (em particular o salazarismo), o ‘colonialismo’, a pobreza, o
racismo, a desregulação do sistema de ensino. Admito que se possa incluir mais
um ou outro núcleo-chave, mas não serão muitos mais. Seguindo a lógica
psicanalítica, o caminho passa pela legitimação social de diferentes versões
(‘seis’) interpretativas para cada um desses fenómenos.
São os bloqueios à expansão
dos ‘campos da significação’ neste domínio que evidenciam quem pertence à casta
superior pensante e quem fica remetido à ignóbil ralé. Ultrapassar este estádio
implica ter consciência de que vivemos mergulhados numa patologia coletiva e,
como consequência, minimizá-la passa por sermos bem menos tolerantes aos
maniqueísmos simplórios dos discursos de grande parte das elites sobre questões
sociais sensíveis e, por isso, complexas. Tal primarismo constitui um dos
fatores que mais trava a prosperidade. Por ser por demais séria, a questão
justifica uma profunda reinvenção intelectual, académica e cultural, uma vez
que a prosperidade depende da ambivalência, complexidade ou abertura com que o
pensamento coletivo, como o individual, lidam com o meio envolvente.
Neste jogo, tem sido também
problemático o papel do sistema de ensino. A pulsão maniqueísta, indissociável
do radicalismo ideológico, tornou-se tanto mais vincada, agressiva, barulhenta,
estéril quanto mais escolarizados são os indivíduos. Ou seja, os que hoje
dominam um maior número de conhecimentos formais não são necessariamente os que
estabelecem relações ambivalentes, isto é, inteligentes com os inúmeros e
contraditórios significados da vida quotidiana. Dois olhos servem para ver a
coisa e o seu contrário.
Anos e anos de trabalho de
campo em Moçambique demonstraram que, face a assuntos sensíveis (como a herança
colonial portuguesa), é muito mais ambivalente e complexo e, por isso, bem mais
rico o pensamento dos humildes do que de certas elites escolarizadas. É nas
últimas que é mais fácil antecipar, ao fim de poucos minutos de conversa, quem
são os bons e os maus do planeta e da história, apesar do invólucro da fala
polida. Quer dizer que de um lado está um amontoado de conhecimentos formais e
discursos fluentes e, do outro lado, está a inteligência de senso comum na
relação com o meio envolvente e com o sentido do tempo histórico.
Em Portugal, a relação com as
heranças do tempo do Estado Novo – por ser uma época com carga traumática, mas
também por estar longe de se esgotar nela, bem como por ser o referente
fundador do tempo presente – instituiu os mais significativos recalcamentos que
atormentam as mentes. Aí reside a fonte primordial das frustrações e falhanços
da democracia portuguesa, uma vez que, por pressão dos que se sentem donos
dela, aquela arvora-se em alter-ego ultrarradical do passado histórico
imediato, no sentido de um antes todo ele ‘mau’ e um depois todo ele ‘bom’,
sendo o ‘mau’ que sobra no presente herança do ‘espírito do antigamente’. Esta
via dominada por generalismos grosseiros na gestão da memória coletiva de senso
comum vai fazendo com que a democracia corra o risco de ela mesma se
transformar numa caricatura de tanto caricaturar o passado imediato.
Para percebê-lo, basta
comparar os discursos formalmente instituídos que marcam o lugar do poder (no
sistema de ensino, na comunicação social, no debate político, na literatura, na
música, no cinema, etc.) com aquilo que sempre se ouviu em conversas em mesas
de cafés, com os mais velhos, entre amigos, em ambientes informais, entre
outros, considerando apenas gente que se limitou e limita a viver o quotidiano,
para se concluir que existe uma parte da sociedade portuguesa, tão digna quanto
as demais, cujo pensamento e sentimentos sobrevivem escorraçados do espaço da
legitimidade pública da democracia. Mas é precisamente porque o passado teve
componentes dolorosas que não se deveria “deitar o menino com a água do banho”.
Limito-me a um minúsculo
exemplo. Arrisca-se a anatematizações o ingénuo que se atreva a elogiar as
salas de aula onde aprendeu ‘antigamente’ como se as salas de aula de hoje
fossem o paraíso na terra.
É infalível que os
recalcamentos malsucedidos do inconsciente coletivo um dia se manifestem. Pior
se ocorrer por vias ínvias. Razão que justificaria que o processo decorresse de
forma mais aberta no sentido da sublimação, pela admissão da exposição pública,
das mais variadas versões sobre o passado. Para o mais, está em causa uma época
que ainda conta com testemunhos na primeira pessoa e vivemos tempos em que a
esperança média de vida, e com ela a memória coletiva comum, crescem como
nunca.
O facto é que até hoje não tem
sido viável produzir filmes, romances, ensaios ou um simples artigo na imprensa
fora dos lugares-comuns instituídos sobre o tempo do Estado Novo sem que a
saliva corrosiva da hegemónica elite bem-pensante, a polícia do espírito, mate
à nascença ou remeta ao silêncio tais ousadias, mais não seja adjetivando-as de
‘propaganda’.
A persistência deste cenário
(ou cemitério de pensamentos e emoções) não favorece a sustentabilidade da
liberdade por gerações e gerações. A liberdade é sustentável, fértil e
favorável à prosperidade em sociedades que legitimam espaços intelectuais e
culturais de catarse permanente de recalcamentos herdados de todos os seus
passados e do presente. Além do mais, a vida não se esgota na esfera política e
muito menos no significado estreito habitualmente atribuído à dignidade, ao
civismo, ao sentido de responsabilidade, ao sentido da relação com os outros, à
vida simplesmente vivida independentemente da natureza do poder político.
Perante um fenómeno histórico
e social por demais complexo, por que razões em vez de uma interpretação de
sentido único não podem existir mais umas quantas interpretações reconhecidas
socialmente como legítimas? É em torno de núcleos do pensamento social como o
Estado Novo que as sociedades alimentam os absurdos perigos revolucionários. O
que é coagido ao silêncio tem tanto ou maior potencial disruptivo do que a
carnavalesca extrema-esquerda.
Sobre os outros fenómenos
(colonização, racismo, pobreza, desregulação do sistema de ensino) escrevi o
suficiente no Obervador. De resto, não tenho nenhum ‘American Dream’ antes um
‘Portuguese Dream’. Nesta floresta de enganos, nem a expressão deste sentimento
parece admissível a imigrantes, minorias, ex-colonizados ou “pretinhos
salazaristas”.
Título e Texto: Gabriel Mithá Ribeiro, Observador,
2-3-2015
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