Paulo Tunhas
Tivesse Passos pisado
inadvertidamente os pés do porteiro de São Bento e logo viria Alegre, com
aquela mistura de poesia, moral e política que tanto se prejudicam umas às
outras, exigir a sua demissão
A seguir ao futebol, o
desporto da indignação é certamente o desporto mais noticiado em Portugal. A
diferença é que, ao contrário do outro, não é uma paixão que entretenha todos
os estratos da sociedade. Os seus verdadeiros admiradores e praticantes encontram-se
nos membros da classe política e nas suas várias e diversificadas adjacências,
que vão até aos fóruns de discussão da TSF ou das televisões. Uma boa parte da
população é-lhe indiferente ou apenas finge interessar-se por ele de tempos a
tempos, e isso mais por questão de conversa social do que por outra coisa.
Nos últimos dias o objecto
desportivo principal foi Passos Coelho, por causa da história do pagamento em
atraso dos impostos e das contribuições para a Segurança Social. Não se contam
os artigos de jornal e as opiniões televisivas da sociedade dos amigos da
indignação. E, dada a procura, o Expresso até decidiu espertamente publicar um
documento forjado indicando uma quantia superior à dívida efectiva que Passos
Coelho, como se sabe, entretanto já pagou. Convém contagiar. As paixões são
assim, e a indignação é uma paixão.
Por acaso, simpatizo com
Passos Coelho, que não conheço pessoalmente. Não foi sempre assim, mas nos
últimos anos, com as inevitáveis trapalhadas pelo meio, ele mostrou uma coragem
e uma persistência assinaláveis, que revelam força de carácter, e uma
urbanidade no trato com os adversários políticos e com a comunicação social que
são um alívio quando pensamos em certos exemplos recentes. Essas
características são incompatíveis com a personagem que os amigos da indignação,
nesta sua nova excitação, andam a querer construir.
Admito que os atrasos foram,
de um ponto de vista político, mais do que um crime: foram um erro. E que as
explicações dadas ao facto padeceram de uma mistura de verosimilhança e de
prolixidade confusa. Em geral, basta uma única prova, ou uma única explicação.
Quando são precisas muitas, é porque nenhuma delas fala por si. Mas daí a este
alarido, o passo é descomunal e indevido. Primeiro, porque as explicações são,
como disse, verosímeis. Basta cada um de nós meter a mão na sua consciência
para ver. E, em segundo e mais importante lugar, o exagero na importância
concedida a esta história, se virmos a coisa com o mínimo de distância, o que o
desporto da indignação obviamente não permite, não roça o absurdo: entra
largamente dentro dele.
Há em tudo isto, é claro, um
aspecto político. A esquerda, como é costume, babou-se de raiva. Os fracos
resultados do PS nas sondagens podem explicar alguma coisa. Dados os hábitos comuns,
isso nem sequer é grave. E não tenho muitas dúvidas que o PSD, se estivesse na
oposição e o primeiro-ministro fosse António Costa (que, parece, tem uma
história que se avizinha da de Passos), agiria de forma parecida. O que é
interessante é a singular mistura de política e moral nos argumentos dos
indignados.
Parece que, como escreveu
Manuel Carvalho no Público do dia 8, o caso revela uma “mancha” moral em Passos
Coelho. Não discuto a autoridade de Manuel Carvalho, ou de quem quer que seja,
para falar em nome da moral. Constato apenas que, quando se começa a falar em
nome dela, arriscamo-nos, na maior parte das vezes, a entrar no domínio da
subjectividade. E, além disso, executamos um gesto que excede largamente em
violência qualquer argumentação política. A coisa piora ainda se, embora
pretextando que não, a inculpação moral é politicamente motivada. Era a altura
de surgir uma nova versão do “Aviso por causa da moral” de Fernando Pessoa.
Aparecem por aí tantos grandes escritores todos os dias que um deles bem que
podia meter as mão à obra.
De qualquer maneira, segundo a
opinião corrente, há uma “mancha” indelével na alma de Passos. Era uma coisa
que acontecia aos heróis da tragédia grega. Por uma escolha com o seu quê de
involuntário, punham-se a matar os filhos, ou o pai, e coisas assim (crimes
irrisórios se comparados com o de Passos), e quando compreendiam o que tinham
feito era tarde demais. De acordo com uma interpretação muito conhecida, isso
costumava provocar sentimentos de medo e piedade nos espectadores. Medo por se
porem na pele dos personagens e pensarem que o mesmo lhes poderia acontecer a
eles (ninguém diga que está bem) e piedade pelo sofrimento alheio.
Passos tem menos sorte. A sua
presente desventura não provoca nos desportistas da indignação nem medo nem
piedade. Não provoca medo porque nem só por um instante pensam que lhes poderia
ter acontecido o mesmo que a ele (pagar com atraso impostos e contribuições
para a Segurança Social) e não suscita piedade porque o sofrimento alheio é até
apreciado. Numa tragédia portuguesa, ao herói trágico não lhe bastaria o
sofrimento ao reconhecer o seu erro: teria de aguentar com os insultos dos
espectadores. Seria, é claro, uma péssima tragédia, porque destituída de
objectividade e feita para suscitar a subjectividade moralista contaminada de
farronca e detestação, contrários aproximativos do medo e da piedade.
Mas o lugar de Passos não é,
neste caso, numa tragédia. Não há nenhuma “mancha” moral indelével provocada
pelo que fez, contrariamente ao que dizem os indignados. Tivesse feito ele
outra coisa, como pisar inadvertidamente os pés do porteiro de São Bento, e
logo apareceria na mesma Manuel Alegre, com aquela mistura de poesia, moral e
política que tanto se prejudicam umas às outras, exigir a sua demissão. Há
casos em que não são as coisas que chamam a indignação, é a indignação que
chama as coisas.
O que Passos tem que fazer, se
me é permitida uma opinião na matéria, é corrigir politicamente o seu erro com
umas poucas palavras acertadas e assertivas, sem mais explicações, dando o
assunto por encerrado e deixando os outros a falarem sozinhos. E também
lembrar-se que os desportistas da indignação, além de histriónicos, são em bem
menor número do que parece. Há muita, muita gente que não confunde as coisas e
que crê que, em grosso, o que ele faz no Governo é feito com uma genuína
convicção no carácter bem-fundado das suas escolhas. E que, de resto, pensa que
não poderia optar por caminhos muito diferentes daqueles que escolheu. Uma
convicção partilhada por muito boa gente do PS, pelo menos numa das várias
versões que este costuma oferecer ao público em geral.
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