Maria João Avillez
Não é exclusivo nosso, nem
patologia apenas nacional. O “mundo” é de esquerda e as agendas mediáticas,
como vasos comunicantes, é dele que se alimentam enquanto lhe fornecem o
oxigénio de que precisa
1. “Tardou mas arrecadou”. (há
adágios fabulosos). Arrecadou tanto que parece que sempre existiu pelo modo
como se tornou indispensável a milhares de pessoas que fizeram dele a sua única
fonte de informação, um prazer, uma experiência, uma necessidade vital,
um vício, uma companhia, uma tertúlia e sim, foi tudo isto que fui ouvindo ao
longo destes últimos doze meses. Sem surpresa, de resto: o Observador veio
encaixar-se naquele espaço político, cultural, económico, civilizacional (não sei
medir o seu perímetro) que estava sem uso. Sem quem dele cuidasse, o
representasse, ou sequer o “ocupasse”.
Entrou na cena mediática com a
lisura, o rigor, a racionalidade, a imaginação, a elegância, que põe na
intermediação entre a notícia e o seu receptador; entre o universo da
informação e essa vastíssima plateia de gente disponível para a consumir
mas… não de qualquer modo, nem a qualquer preço. Mérito do Observador, de quem
o concebeu, lhe deu vida e alma e de quem lá deixa agora trabalho e suor todos
os dias. Tenho pouca responsabilidade no êxito inegável da empreitada mas tenho
há muito esta camisola vestida, assisti de perto às vicissitudes da sua
gestação e ao longo parto. E lembro-me do que fui ouvindo e ainda ouço, embora
hoje, várias oitavas abaixo: remoques desconfiados, suspeitas infundadas, críticas
corrosivas, declarações de intenções, declarações de guerra.
Um grande amigo meu,
jornalista, transformou um dia um jantar lisboeta numa arena: o Observador não
tinha de ter direito de cidade. Ou não se tratava apenas dos “interesses dos
capitalistas, do seu dinheiro e dos jogos políticos?” Ou então, como
garantia alguém cujas responsabilidades ao serviço do país lhe deviam impedir a
ligeireza, “o novo projecto iria ser a nova a verdade a que temos direito….”
Outra vez, num corredor da TVI, ouvi um grande humorista, a dois centímetros de
mim, disparar com sibilina solicitude sobre o David Dinis: “não achas que vocês
estão um bocadinho de mais à direita? (ah, se fosse menos, ele não se importaria
mas assim… E quem mediria esse autorizado “menos”?).
Gente de esquerda, já se vê.
Sempre atentos, sempre vigilantes.
Quarenta anos depois de Abril
de 74, a direita continua sem passaporte. É verdade: “a direita não entra”, é
uma espécie de mandamento. Metade do país é como se fosse um intruso na outra
metade. Há que pedir licença para existir no mapa nacional. Um mapa obviamente
expurgado de uma parte não dispicienda do seu território já que, bem entendido
e digamo-lo gentilmente, a direita está proibida de existir: não pode ganhar
eleições, não pode governar e muito menos pode fazê-lo bem; (“não sabe”); não
pode decidir (“não tem critério”); nem escolher (fá-lo-ia sempre “mal”); não
pode ser culta, (a esquerda tem o exclusivo); não pode ter ideias, (são
habitualmente “nocivas”); não pode exibir-se, ter brilho, votos ou seguidores;
não pode cuidar dos “pobres” (se governar “a pensar neles” está a fazer batota
ou então a explorá-los); não pode ganhar prémios, ter biografados, contar com
sindicalistas, escritores ou criadores (não tem “legitimidade”);
etc. Poderia ir por aí fora, quem sabe até ao infinito, abrindo as várias
folhas de um leque que alguém que exista ou respire politicamente à direita do
PS não deveria poder permitir-se abrir.
Estou a ser intencionalmente
simplista porque é justamente disto mesmo que se trata entre
nós: da desarmante simplicidade com que se foi fazendo desta subversão da
própria democracia uma norma de aço. Durante quase três anos fui olhada nalguns
meios bem pensantes entre a ironia ácida e a perplexidade despreziva sobre este
projecto informativo mas quer uma, quer outra, acabaram esvaídas na sua
inutilidade. Não será por acaso. Um ponto (o maior?) a favor do Observador.
Este enviezamento não é, já se
sabe, originalidade nossa. O “mundo” é mais bem de esquerda e as agendas
mediáticas, como nos vasos comunicantes, é dele que se alimentam enquanto lhe
fornecem o oxigénio de que precisa. Mas espanta que esta espécie de, como
dizer?, “rotina” esteja de tal modo assimilada que já nem se repara nela. Só
isso explica que se tenha podido escrever com naturalidade que Passos Coelho
não podia ter usado um cravo na lapela no dia 25 de Abril porque os comunistas
não deixavam, a ninguém incomodando de resto o extraordinário argumento para o
veto do cravo. Que se tenha clamado nos écrans televisivos que a coligação não
tinha o direito de “ocupar”esse dia histórico com o anúncio do seu segundo
casamento político, porque a data lhe é estranha; que tenha havido clamores
indignados face a um livro que supostamente conta a história pessoal do
primeiro-ministro, não pela sua qualidade (que não existe) ou oportunidade (que
não era esta), mas simplesmente porque a esquerda acha que biografias só as
dela.
Há aliás mais exemplos de
intromissões indesejadas da direita, que não merecem ficar soterrados no
esquecimento e eis um deles, que exponho, de tão revelador: uma reunião
internacional promovida recentemente pelo secretário de Estado da Cultura para
pensar em voz alta os caminhos da cultura, teve, na mídia, um extraordinário destino: nuns casos, foi liminarmente
condenada ao silêncio, noutros, ferozmente vilipendiada.
A iniciativa desenvolveu-se
por entre concorridos debates e painéis que em simultâneo, ocorriam em seis
salas do Centro Cultural de Belém mas o que foi colocado na montra mediática
foi que o chefe do Governo “falara para uma sala onde apenas se sentavam
duzentas pessoas” (cito de memória). Não me lembro de ter ficado a saber algo
de interessante (ou mesmo desinteressante) sobre a intervenção de
oradores que nunca poderiam ser confundidos com o governo (Mega Ferreira,
Jorge Gaspar, Guilherme Oliveira Martins, Augusto Mateus, por exemplo); ou de
ter lido um parágrafo sobre as conclusões deste fórum que durante três dias
ocupou o CCB e outros cinco, em diversas salas do país. Retive porém prosa
prolixa sobre o custo do evento e ressentidos estados de alma dos jornalistas
contra a incursão do governo por um dos mais sagrados territórios da esquerda.
Alguém já reparou que um
governante fora da área da esquerda não tem sombra de garantia de que a media o
divulgue quando promove iniciativas, fala dos seus projectos ou anuncia o que
anda a fazer com o dinheiro público (devendo porém o governo fazer o maior caso
das opiniões e recomendações dos comentaristas)? Face a isto, pergunta-se: onde
está a informação digna desse nome? E o bom uso das suas regras? E a
responsabilidade dos editores? E a ética da profissão? E a liberdade de
informação? Não está.
Haveria nestes exemplos muito
pano para mangas, mas o que interessará porventura é sublinhar como eles são
geradores de outros casos e exemplos, numa infindável e quase obsessiva cadeia
de estranhos comportamentos de que o SMS de António Costa a um director do
Expresso é excelente exemplo: a tibieza da reação no universo da comunicação
social substituiu com vantagem uma rejeição que deveria ter sido imediata e
geral e não foi. Mas estamos bem lembrados de como por muito menos que um
SMS deste calibre socialista, os governantes de direita foram – e são – criteriosamente
triturados ao longo de anos e anos.
Sim, repito, nada disto é novo
nem um exclusivo nacional, como as queijadas de Sintra. Nem tão pouco –
desenganem-se – uma lamúria minha porque me deu para aqui. É uma gelada
constatação – o que é bem pior, de resto – redigida sem exagero ou
parcialidade. Para quê? Para modestamente lembrar que convém que a rotina deste
estado de coisas não nos enleie na sua aparente irredutabilidade; nem nos faça
desistir de abrir uma estrada dupla numa via há muito de sentido único. Nunca é
demais avisar as navegações sobretudo se os ventos políticos não se recomendam.
É que anda-se há quase meio
século a roer este osso.
2. A alegria virou
um susto e a festa, uma vergonha. O dia que hoje deveria ser “encarnado” para
uma benfiquista como eu, foi afinal um dia de luto: aquilo foi ainda pior do
que pensámos que foi. A maré está tão baixa que o perigo de encalhar é
realíssimo.
3. Parabéns ao
Observador. Foi há um ano, foi ontem, foi há uma vida e por isso parabéns aos
seus inventores, directores, editores e áquela jovem turma de jornalistas.
Merecem o aplauso, a fama e o proveito.
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