segunda-feira, 25 de maio de 2015

Gostava de ter um programa assim onde votar. Mas não vou ter

José Manuel Fernandes 
Gostava de políticos que em vez de prometerem fazer, prometessem deixar fazer. E gostava de um país onde os cidadãos, em vez de pedirem tudo ao Estado, assumissem mais responsabilidades no seu destino

1. Duas entrevistas. Pedro Passos Coelho. António Costa. As linhas gerais de um programa eleitoral: o do PS. Muitos jogos florais, troca de galhardetes, mas ao mesmo tempo um tremendo vazio. O que os principais partidos portugueses nos têm para oferecer são apenas graus diferentes, ou velocidades diferentes, de regresso ao passado, ao país de antes da crise.

Com mais juízo e menos desvarios, com formas diferentes de verem a retoma da economia, mas sem nenhum dos dois partidos ter a ousadia, a frontalidade, de dizer aos portugueses que não é possível voltar ao antigamente, aos “direitos adquiridos” para sempre, aos contratos de trabalho para a vida, ao mundo previsível, protegido, mas irremediavelmente falido, que foi o nosso até ao dia em que tivemos de pedir ajuda externa. A questão não é apenas voltar ou não às grandes obras públicas, ou fazê-las por “consenso alargado” – a questão, a grande questão, é que temos um modelo de Estado, e um modelo de relacionamento do Estado com a economia, que tem de ser profundamente revisto. Mas disso não se fala.

Gostava que nas próximas eleições tivesse um programa no qual pudesse votar com entusiasmo e convicção – já comecei a perceber que a escolha vai ser entre um mal maior e mal menor. Se chegar a ser.

O que realmente gostava é que se percebesse que a nossa crise não existe apenas por causa da bebedeira dos juros baixos, da ineficiência de uma economia acomodada a um mercado interno protegido e, claro, dos desvarios de José Sócrates. Ou da crise financeira global que foi o detonador das crises que vieram depois. É altura de perceber que isso não explica tudo. A nossa crise, como a crise que, em diferentes dimensões e modalidades, tem persistentemente condenado as economias desenvolvidas, com poucas excepções, a crescimentos anémicos, decorre de mudanças radicais que exigem soluções também radicais.

2. O que não nos dizem é que, mesmo depois de regressarmos aos mercados ou de retomarmos um crescimento inevitavelmente tímido, continuamos sentados em cima de uma bomba relógio. Uma bomba relógio política, pois é cada vez mais difícil – ou tem-se mostrado cada vez mais difícil – tomar decisões estruturais e obter consensos alargados, uma vez que grande parte das nossas sociedades, e da portuguesa em particular, está entrincheirada em qualquer forma de benefício (das “rendas” dos grandes oligopólios às “rendas” de casa subsidiadas de “pobres” para a toda a vida, passando pelas “rendas” dos pilotos da TAP ou dos trabalhadores do Metro). Difícil também porque a democracia tem dado lugar à demagogia, o realismo cede terreno face ao populismo, a transparência tornou-se obsessiva bisbilhotice, o debate político e ideológico parece ter-se transferido para o tribalismo grotesco das redes sociais e das suas reacções viscerais (também lhes chamam “virais”).

Todos sabem que temos uma demografia extremamente desfavorável. Que isso vai fazer aumentar a pressão não apenas sobre o sistema de pensões, mas também sobre a rede de serviços sociais e de cuidados de saúde. Todos sabem que temos um Estado demasiado preocupado, e ocupado, com micro-regulamentos que pretendem comandar tudo, impor normas a tudo, tal como sabem que sempre que ocorre um desastre inesperado se vem logo dizer que falta mais uma lei ou um novo regulamento qualquer.

Todos também sabem que somos um país pequeno, uma economia muito aberta, e que enquanto não produzirmos e exportarmos mais, qualquer aumento do consumo interno pode criar a ilusão de um crescimento da economia, mas uma ilusão com dramáticas consequências no défice externo e numa dívida que, considerando o Estado, as empresas e as famílias, é a maior de toda a OCDE (370% do PIB, quase quatro anos de tudo o que produzimos em Portugal).

Face a isto, o que nos propõe o PS são paliativos, aspirinas que talvez ajudem a mascarar a doença, mas que são ao mesmo tempo apostas arriscadíssimas que, podendo bater certo nas contas dos macro-economistas, não batem certo com uma economia que necessita de se abrir muito mais à concorrência e ao exterior.

Face a isto, o que até agora nos tem proposto a actual maioria é apenas prudência, para não estragar o que foi, goste-se ou não, um duro reajustamento, um penoso regresso aos números positivos e a introdução de algumas (poucas, insuficientes) reformas.

3. Gostaria de algo bem diferente. Gostaria de que ficasse claro que não é possível manter o nosso modelo de Estado Social, em que o Estado não é apenas o garante das prestações essenciais, mas antes o quase universal prestador de serviços. Gostaria que ficasse claro que vamos ter de viver numa sociedade menos regulada, com todos os riscos que isso implica, com todos os interesses que vai desalojar, mas também com todos os benefícios que pode trazer – de serviços como a Uber à forma como a Booking e outros sites permitiram a tantos portugueses que começassem a alugar (e a recuperar) as suas segundas habitações.

Gostaria de ir muito, muito mais longe. O Serviço Nacional de Saúde não pode continuar a ser visto como o prestador universal de cuidados, até porque isso já é uma imensa mentira. A escola pública não pode continuar a ser vista como um serviço do Estado, centralizado na 5 de Outubro e condicionado pelo Mário Nogueira. O direito às pensões não pode continuar a não ter limites, a obrigar o Estado a ser responsável tanto pela imensidão de pensões miseráveis como pelo pagamento de pensões muito altas para o nosso padrão de vida. Devolver a organizações da sociedade civil, de todo o tipo, funções que o Estado tem chamado para si, não pode ser encarado como uma forma de beneficiar amigos (como tantas vezes sucede), antes como o único caminho possível para prestar melhores serviços de proximidade, sem políticos a interferirem. A ideia de que “solidariedade social” é igual a serviços público e que o resto é “assistencialismo” tem de ser vista como um arcaísmo tão desajustado como a do “planeamento central da economia”.

O Estado, tal como hoje existe, com as funções que tem, com tudo aquilo que se lhe pede – e em Portugal, país que sempre gostou de se encostar ao Estado, chamasse-se ele Paço Real ou Ministério da Economia, pede-se-lhe sempre mais mais – está condenado continuar a consumir recursos crescentes se não alterarmos a sua lógica. Mas como não voltará a haver o dinheiro fácil do passado, o Estado estará condenado a uma espécie de “austeridade para mil anos”, como o Reich que Hitler imaginou mas virado do avesso.

4. A reforma do Estado, de que tanto se fala sem nada de substancial propor, tem de passar pela devolução de funções que hoje estão concentradas nos ministérios e dependem de decisões políticas, transferindo-as para níveis inferiores da administração pública, para organizações da sociedade civil, para os cidadãos, as famílias, as empresas.

Em muitos domínios isso passa pela co-responsabilização dos cidadãos. Isso já começou a acontecer na área da Saúde, onde a rede de seguros privados complementa, com vantagens mútuas, o recurso exclusivo ao SNS. Isso pode acontecer em muito mais larga escala na Educação. Isso tem de suceder, com urgência gritante, no sistema de pensões, onde quem quiser um dia beneficiar de uma reforma mais elevada terá de encontrar sistemas alternativos e complementares.

Hoje o Estado ocupa-se da colocação de todos os professores do país, porque é isso que dá aos sindicatos o poder que eles têm e porque é isso que é a cultura dos serviços e o destino dos ministros. Não faz nenhum sentido. Tal como não faz nenhum sentido continuarmos a falar numa espécie de “contracto colectivo” dos médicos, ou dos professores universitários, a que damos pomposamente o nome da “carreiras médicas” ou de “estatuto da carreira docente”, tudo naturalmente supervisionado pelo político de serviço, que tanto pode ser competente e rigoroso, como pode ser cobarde ou mesmo venal.

Hoje confunde-se informatização dos serviços e desburocratização com lojas do cidadão, quando o que devia estar a ser feito era a desmontar as toneladas de legislação que dizem como um restaurante deve arrumar o seu frigorífico, quantos centímetros devem distar as torneiras num balneário de uma fábrica ou a que altura se pode colocar um interruptor eléctrico.

Infelizmente não é isso que pede a gritaria das redes sociais, não é isso que está na cultura da administração pública, não é nisso que pensam os políticos.

5. Um programa deste tipo não é totalmente estranho ao que já está a ser feito, um passo aqui, outro além, em países como o Reino Unido, a Holanda, a Dinamarca, a Suécia, mesmo a Alemanha ou a Suíça. Não é uma utopia, é uma necessidade e, ele sim, exige uma visão sobre o que será o nosso futuro, para onde caminhamos. Uma visão para a próxima década e para as seguintes.

Eu não quero que os políticos me digam que a sua visão é, por exemplo, a de um país mais qualificado – quero que os cidadãos sigam por esse caminho porque têm os incentivos certos.

Eu não quero que os políticos me digam que a aposta tem de ser nas empresas de tecnologia e criem para isso novos subsídios (esse eufemismo para “rendas”) – quero que as empresas, habituadas à concorrência, escolham o seu caminho, que tanto pode ser a produzirem ostras como reinventarem uma indústria como a têxtil.

Eu não quero que a obsessão pela igualdade acabe na limitação da liberdade de procurar ter sucesso – quero sim que essa liberdade venha com mais responsabilidade e que o Estado se ocupe mais e melhor dos que realmente necessitam em vez de tremer como varas verdes perante a mais pequena gritaria de um grupo de “reformados VIP”.

Eu não quero um Estado que cobra impostos sobre tudo o que se move; que quando isso não chega para paralisar a actividade e limitar a ambição e a inventividade, cria logo novos regulamentos; que, quando finalmente tem tudo controlado, passa a subsidiar o que não funciona; e que acaba sempre falido, pois essa é a fatalidade de quem tudo quer controlar.

6. Lenine dizia que ter confiança é bom, mas que ter controle é melhor. Ora o que precisamos é de não ser leninistas. No fundo, de não sermos tão socialistas, estatistas e intervencionistas como somos, e de perceber que numa sociedade em tão rápida mutação como é qualquer sociedade moderna, o Estado move-se sempre mais devagar e só pode atrapalhar se quiser limitar e enquadrar todos os riscos e regular todas as nossas vidas. Só que viver com mais riscos e mais responsabilidades é algo que, quero crer, os portugueses acabarão por preferir a este pântano que se eterniza.

Infelizmente, repito, não creio que em Outubro tenha a possibilidade de votar num programa assim, de real mudança, com visão de futuro, sem medo do passado. 
Título e Texto: José Manuel Fernandes, Observador, 24-5-2015

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