terça-feira, 26 de maio de 2015

Macroscópio – Das eleições espanholas ao consenso no tempo das redes sociais

José Manuel Fernandes
Desta vez as sondagens não estavam, no essencial, enganadas. As eleições autonómicas e autárquicas deste domingo em Espanha deram resultados próximos do que se esperava: o PP foi o partido mais votado, mas perdeu as suas maiorias absolutas; o PSOE sofreu um desgaste mais pequeno; o Podemos ganhou em Barcelona cidades e pode vir a governar Madrid; o Ciudadanos também teve um resultado significativo.


Até ontem, a Espanha democrática tinha uma fórmula de governo: ora ganhava o PP, ora ganhava o PSOE; era fácil obter maiorias absolutas; quando não se chegava à maioria absoluta era possível fazer acordos com pequenos partidos, por regra partidos regionais. Será que essa Espanha acabou ontem? Será que acabou o bipartidarismo? Veremos, com mais segurança, o que acontecerá nas eleições mais importantes, as legislativas, previstas mais lá para o fim do ano. Mas não há dúvida que estamos perante um fenómeno novo: em muitas autarquias e em muitas regiões autónomas só será possível governar em aliança. Com negociações e consenso. Algo que não está na cultura política espanhola.

 Parto para a abordagem deste tema citando dois textos escritos ainda antes de os espanhóis votarem, mas que em nada se desactualizaram. O primeiro é o de Jorge Almeida Fernandes, no Público, Depois das eleições: Borgen em Espanha. Não sei se os leitores do Macroscópio conhecem a série dinamarquesa que procura mostrar os bastidores da política nesse pequeno país escandinavo, mas quem a seguir sabe como, nesse país, os governos implicam sempre compromissos entre partidos às vezes muito diferentes. Ou seja, há uma “a arte dinamarquesa do pacto e das coligações” que ninguém sabe se é reproduzível em Espanha, pois “Ganhar eleições é uma coisa, outra é a tarefa de governar”. Neste texto discutem-se vários cenários, pois “O sistema espanhol está a passar de um modelo bipartidário para um quadro tetrapartidário: Partido Popular, PSOE, Podemos e Cidadãos” e “Os partidos vão ter de aprender rapidamente as novas regras — praticadas na maioria dos países europeus.” Mas o melhor é ler tudo, deixando eu aqui um aperitivo:

A tentação de fuga ao poder por parte dos novos partidos é o cenário que dá ao PP a esperança de “ressuscitar” nas legislativas. O impasse na Andaluzia alimentou a tese de uma Espanha “ingovernável quando a economia começa a recuperar” — Rajoy teria um lema mobilizador para os próximos meses: “Nós ou o caos”. Também a ele convém a retórica da Guerra de Tronos.

O outro texto pré-eleitoral que recomendo é o de Pedro J. Ramirez no blogue do El Español, o novo jornal que aquele famoso jornalista está a preparar para lançar nos próximos meses. Em ‘Gobernantes’ en la ‘torrentera’, Pedro J. considera que o resultado que já então se previa era uma consequência inevitável da sensação do eleitorado que não se podia esperar que os grandes partidos mudassem por dentro: “Cuando después de todo lo ocurrido la única “injusticia e ingratitud” que Aznar reprocha al PP de Rajoy es la cometida con Ana Botella y cuando Felipe González emerge una vez más de la bruma del pantano para marcar territorio a sus últimos polluelos, hay que abandonar toda esperanza de que los cambios radicales que necesita España vayan a surgir de ese duopolio. A la hora de la verdad en el PP y en el PSOE se cierra filas con quien manda, “como con la madre, con razón o sin ella”.”

Foi isso que aconteceu. Falta agora saber se num país com uma tradição de luta e de retóricas políticas bem mais agrestes do que as que temos entre nós será possível realizar os pactos necessários. Na Andaluzia há meses que se vive um bloqueio precisamente por impossibilidade de qualquer compromisso.

Quanto à questão do fim do bipartidarismo, João Marques de Almeida, aqui no Observador, em Nova vitória da direita num país com austeridade, um texto escrito já hoje, com todos os resultados conhecidos, alinha com os que defendem que ainda não foi desta que ele acabou: “Discordo da maioria das análises que sublinha (…) o fim do bipartidarismo em Espanha. Acho que são conclusões prematuras e, desconfio, que as eleições legislativas no fim do ano irão demonstrá-lo. (…) A crise económica e a corrupção nos dois principais partidos permitiram o aparecimento de dois novos partidos, o Podemos e o Cidadanos, com uma expressão política significativa”. Mais: “Ao contrário do que apontavam algumas sondagens, os dois partidos tradicionais foram os mais votados e juntos conquistaram mais de metade dos votos. Além disso, em termos nacionais, as eleições regionais – as leituras nacionais são bem mais complicadas no caso das municipais – mostram que os dois novos partidos não alcançaram os dois dígitos.”

Já Rui Ramos, também no Observador, em Espanha: a política dos pequenos e médios, está mais próximo da ideia de que estamos a assistir ao fim do bipartidarismo, e por isso mostra algum pessimismo sobre o futuro próximo: “As eleições limitam-se a criar um mapa caótico, a partir do qual quase tudo é possível. Na manhã de hoje, o PP já sugeria “pactos de estado contra o radicalismo”, enquanto os candidatos do Podemos propunham a formação de “uma maioria pela mudança”. Ambos procuravam assim vincular ou condicionar os outros partidos. Este é o segundo efeito do fim do bipartidarismo: os cidadãos votam, mas deixaram de saber no que votam, porque não é fácil adivinhar qual a composição e a orientação dos governos que vão sair do ciclo pós-eleitoral de negociações e acordos. Ou seja, aumentou a opacidade do sistema político.”

Para além destas análises, a que certamente mais se juntarão nos próximos dias, para além das velhas feridas que tornam difícil qualquer debate político em países tão polarizados como Espanha, há uma realidade que se tem vindo a infiltrar não apenas nas nossas vidas, como na política e na forma como ela é feita: a do radicalismo às soltas nas redes sociais.

Tomo como primeiro pretexto para esta incursão um texto de Celso Filipe no Jornal de Negócios de hoje, Aqui há gato. O pretexto foi a onda de indignação colectiva gerada por “por causa de um exercício do Livro Escolar de Física do 9º ano, que pressupunha que o Diogo atirava um gato da varanda do seu quarto, a cinco metros do solo”. O caso em si não valerá muito, mas como nota o autor “O que ressalta da história do Diogo é a capacidade da sociedade para se mobilizar com assuntos menores, maximizados pelas redes sociais, como se fossem a coisa mais importante que se passa no país.”

Diferente é quando dos gatos e outros animais passamos à política. Aí as coisas podem tomar uma outra dimensão, como parece estar a acontecer no Brasil, onde a luta entre a reeleita Presidente Dilma e a oposição parece ganhar novas dimensões e uma nova agressividade. O primeiro texto que me chamou a tenção para esse facto foi uma reflexão publicada no site do Observatório de Imprensa, um texto de Carlos Carrilho sobre O papel do jornalismo na polêmica da xenofobia ideológica. Trata-se de uma reflexão suscitada por um debate sobre o “ódio ideológico nas redes sociais”, notando o autor que “A xenofobia aparece nas redes sociais porque o ambiente virtual facilita a manifestação do discurso do ódio ideológico. Mas a causa do fenômeno não está na internet, que é apenas um facilitador.”

Esse texto levou-me a outros dois, um de um dos mais respeitados jornalistas brasileiros, Alberto Dines, o outro uma entrevista com o sociólogo Manuel Castells. Começo por Dines pela sua reflexão sobre Uma sociedade suicida. A propósito de um crime ocorrido no Rio de Janeiro, nota o jornalista que “Somos todos agentes e sujeitos da mesma violência, assustadores e assustados, governantes e governados, progressistas e reacionários, crentes e descrentes, militares e magistrados, policiais e policiados, professores e aprendizes – todos, sem exceção, se bicam, se dilaceram, se esfaqueiam. Todos sangram. Enquanto rios secam, o sangue escorre copioso nas calçadas e ruas.”

É sem dúvida um diagnóstico pesado, mas que surge na sequência da entrevista de Castells à Folha de São Paulo, sugestivamente intitulada A imagem mítica do brasileiro simpático existe só no samba. Para ele, concretizando, “a agressiva polarização política que se vê hoje nas redes sociais "desconstrói o mito do brasileiro simpático".” Pequena passagem da entrevista:


E por que o brasileiro tem a sensação de que, na internet, há demasiada violência e intolerância no debate?
A internet é um instrumento de comunicação livre. Portanto, causa curto-circuito às instituições e ao poder do dinheiro. A comunicação social estava monopolizada até hoje ou pelo poder político, ou pelo poder econômico. Agora, a internet permite às pessoas comunicar-se diretamente sem passar por esses controles, e sem passar por qualquer censura. Ainda que se queira controlar a internet, não se pode.

Surge assim, exposta, a sociedade brasileira com todas as suas profundas divisões. Não será muito diferente deste lado do Atlântico, mas prezando-se a liberdade então, como ele também diz “a internet é uma tecnologia de liberdade, e portanto realiza uma mudança histórica.” O que não deixa de impor responsabilidades, sobretudo quando se cai na tentação de ampliar os excessos virais nos órgãos de comunicação social tradicionais. É que, afinal de contas, o debate público não pode ser feito apenas de “indignações”. Em todos os sentidos.

Dito tudo isto, como estamos longe, afinal de Borgen, mesmo quando a série nos mostra os lados mais sombrios da política, mesmo num país tão próximo da perfeição como a Dinamarca…

Entretanto, amanhã há mais Guerra dos Tronos nos nossos canais de cabo, e regresso a Jorge Almeida Fernandes, é bom recordar não foi Borgen mas sim a implacável luta pelo poder que marca a Guerra dos Tronos que Pablo Iglésias, o líder do Podemos, quis impor como padrão para Espanha.

Até lá, bom descanso e bos leituras. 
Título e Texto: José Manuel Fernandes, 25-5-2015

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