Paulo Tunhas
É útil conhecer a letra do
pensamento político de José Saramago em 1975. O seu ódio à democracia. O seu
demente sectarismo político. O seu criminoso apelo à denúncia e à perseguição
política.
No dia vinte e cinco de Abril
pus-me a ler um livro de Saramago e só parei no fim. Chama-se Os Apontamentos.
Foi publicado originalmente em 1976 (a minha edição é de 1990) e contém os
editoriais que Saramago escreveu para o Diário de Notícias de 14 de Abril a 24
de Novembro de 1975. A passagem de Saramago como director-adjunto do DN
(nacionalizado) é sobretudo conhecida pelo despedimento, em Agosto desse ano,
de 22 jornalistas “contra-revolucionários”. Mas vale a pena ler os textos. São
um excelente exemplo de fanatismo e dão bem a ideia do que o 25 de Novembro nos
livrou.
Está tudo lá. Do desprezo pela
“democracia burguesa” a sarcasmos vários sobre a liberdade de imprensa, dos
convites à “vigilância revolucionária” (ler: denúncia e perseguição política)
ao apelo (muito compreensível, como se viu) ao voto em branco nas eleições de
25 de Abril de 1975, da ilusão delirante da importância dos avanços do
“socialismo português” para o mundo à defesa do endoutrinamento forçado da
população pelo MFA. E tudo, mas mesmo tudo, banhado por um ódio indisfarçável
(e indisfarçado) dirigido à mínima coisa que se mexesse contra Vasco Gonçalves
e o Partido Comunista. Quem quiser ter uma ideia do estado de espírito
dominante no “Verão Quente”, daquele lado da barricada, ganha muito em ler estes
“Apontamentos”.
Em todo o lado está o
“fascismo”. O “fascismo” que se opõe ao socialismo, que é “a vida”. Uma vida
que se confunde com um processo contínuo que deve ir eliminando um a um todos
os obstáculos à revolução, e em primeiro lugar a quase totalidade dos partidos,
que sofrem de uma absoluta falta de legitimidade. O “Povo” encarregar-se-á de
levar a cabo esse processo: “O Poder desloca-se, por cima das cabeças dos
políticos, para o Povo, para as massas trabalhadoras em ascensão contínua”. É
essa a glória do Portugal revolucionário, a de não ceder, nesta matéria, à “via
dos compromissos em que é fértil a maternal-democracia burguesa”. E é isso que
nos leva (melhor: que nos obriga) à consciência de estarmos a “fazer história”:
“é bom que nos habituemos à ideia de que estamos fazendo história, não apenas a
nossa própria, mas também a do Mundo”. Porque somos mesmo “um exemplo para as
restantes nações”, transformamo-nos “numa espécie de ponto sensível que faz com
que tudo ao redor se crispe ao nosso menor movimento ou palavra”. A “Aliança
Povo-MFA” é “um documento fundamental na história da Europa. Pelo menos…”
Um dos traços mais
persistentes do estilo objurgatório destes editoriais é a insistência no
carácter definitivo do poder revolucionário, mesmo que as ameaças se encontrem,
como mandam as regras, em todo o lado. O IV Governo Provisório, de Vasco
Gonçalves, é “um governo que não merece o nome de provisório”, exibe uma
“militância definitiva”, é “definitivamente militante (o V, bem entendido,
suscita ainda mais elogios). Quem o não perceber, precisa de explicações, e
tanto a “dinamização cultural” do MFA como o próprio Saramago estão
perfeitamente capacitados para nos ilustrar no capítulo. E de forma,
sublinhe-se mais uma vez, definitiva: “É urgente que todos os portugueses o
compreendam, que o compreendam completamente, que o compreendam
definitivamente”. Tudo tem de ser entendido “de uma vez para sempre,
irreversivelmente”.
E o que fazer das cabeças
duras que resistem a entendimentos definitivos? Em primeiro lugar, é preciso
“aprender a distinguir entre amigos e inimigos”, e a estes últimos, os que não
“compreendem”, segui-los com “inflexível vigilância”, uma vigilância nunca
abrandada que nos permita identificar “os traidores, os sabotadores, os provocadores
de qualquer espécie e disfarce”. Temos a obrigação de os perseguir
impiedosamente. Quanto mais não seja, em virtude de uma obrigação nossa, a de
nos tomarmos por aquilo que somos: “Tomemo-nos por aquilo que somos: os donos
de Portugal”.
Entre os traidores
encontram-se obviamente os adeptos das eleições burguesas, da “falsa
democracia” para a qual “metade do mundo nos empurra”. Não convém ter “ilusões
sobre a natureza e fins do eleitoralismo como mecanismo político”. O “processo
revolucionário” é “incompatível com esquemas parlamentares”. As divergências
partidárias, “mais tarde ou mais cedo” deverão ser “confrontadas e conciliadas
no trabalho socialista que é o do Povo Português”. Este é, indubitavelmente, o
núcleo mais duro do pensamento político de Saramago. A democracia, tal como
usualmente entendida, não só é inútil como prejudicial. Ela funciona como um
obstáculo ao Bem, afasta-nos regularmente do definitivo. Dito de outro modo:
não é comunista.
Citei muito, eu sei. E poderia
continuar a citar por páginas e páginas. Mas é útil conhecer a letra do
pensamento político de José Saramago. O seu ódio à democracia. O seu demente
sectarismo político. O seu criminoso apelo à denúncia e à perseguição política.
E a sua ideia, que só poderia nascer numa cabeça incapaz de perceber um
milímetro do mundo, da glória universal e definitiva do gonçalvismo. Tudo isto
num homem que não tinha dezoito ou dezanove anos, mas cinquenta e três. Isto é,
completamente formado.
Somando tudo, não foi uma má
maneira de passar o vinte e cinco de Abril: percebendo mais uma vez quão
importante foi o vinte e cinco de Novembro. Embora a coisa tenha deixado
marcas. Precisei, logo a partir dessa noite, de ver sete filmes de Luis Buñuel
– tinha-me esquecido que ele era tão bom – para entrar em contacto com uma
visão do mundo inteligente, profunda, humana e cheia de humor. Em resumo: tudo
aquilo que faltava em Saramago.
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