José Miguel Sardol
Ligo para dizer que te vi há
uns dias na televisão. Surpreende-me sempre a forma serena como reages à
tragédia que deve representar, para um presidente, ver o seu país em guerra há
mais de quatro anos. Tranquilo face ao drama de ver aumentar todos os dias o
número de compatriotas mortos numa lista que já supera mais de 200 mil e
assistir à fuga de milhões dos teus concidadãos, mesmo aqueles que te apoiavam.
Na televisão, a pose, como
sempre, parecia perfeita. O bigode bem aparado, ao contrário de Saddam, a tez
pálida e o sotaque britânico sibilante, ao contrário de Kadafi. Os anos passam
e nas tuas entrevistas não parece pairar aquela sombra que, em apenas alguns
dias e semanas, começou a escurecer as aparições televisivas de Mubarak e Ben
Ali antes do incontornável «apagão». Compreendo, mas não entendo, esse espírito
de resistência. Pertences a uma minoria, os alauitas, que desde a subida do teu
pai ao poder, conseguiu superar séculos de discriminação para tornar-se a elite
económica e política da nação. Mas essa resistência não impediu, e poderá mesmo
ter favorecido, o avanço dos combatentes do Estado Islâmico que encontram-se
hoje à porta do bastião da família Assad, último refúgio dos afortunados do regime
e linha da frente de uma possível operação militar do aliado russo, a província
de Latakia.
Mas isso não te parece fazer
pestanejar quando surges na televisão. Percebo, mas não entendo, que um homem
isolado que perdeu o controlo do país, prefira evitar os temas políticos e opte
por recostar-se discretamente na cadeira, sem sinais de transpiração, para
dedicar-se a falar dos grandes temas de geopolítica. Já não se trata de ser
presidente para construir casas, quando mais de 4 milhões de sírios tiveram que
fugir do país, de edificar escolas, quando mais de 5 mil foram destruídas, ou
de melhorar as condições de vida da população, quando mais de um milhão de
crianças sírias sofrem de desnutrição.
Pertences a uma minoria
religiosa que foi sempre discriminada pelos estados vizinhos, e habituaste-te,
como o teu pai, a ter que contar com o apoio do exterior para poderes
proteger-te no poder. O modelo de fato e gravata sempre agradou aos ocidentais
– sobretudo com o nada acessório discurso laico para travar os fervores
islamitas. O socialismo pan-árabe do partido do teu pai permitiu-lhe estender a
mão a Moscovo, ainda que virando as costas aos EUA, mas reforçando ainda mais
os laços com o Irão xiita. E para cimentar duas gerações de Assad, o
nacionalismo permitiu-vos reforçar o poder interno e melhorar a diplomacia,
retirando do Líbano sem largar o Hezbollah, para tentar ser melhor tolerado por
todos. A tua viagem a Paris, em 2008, para assistir ao desfile do 14 de julho
nos Campos Elíseos, ao lado do então presidente Nicolas Sarkozy, é talvez o
último momento dessa tentativa de idílio incondicional.
Mas é um jogo que se pode
tornar perigoso, e de anónimo marionetista, como aparentas a cada pergunta do
apresentador, podes passar a marioneta. O apoio militar e diplomático que te
leva atualmente ao delírio de querer silenciar toda a oposição, devastando
bairros inteiros de Aleppo com «bombas barril», não representa uma forma de
admiração ou um reconhecimento internacional da tua ação presidencial. A
geopolítica está longe de ser um tema confortável nas entrevistas televisivas.
Nas grandes negociações internacionais, convém sempre ter um trunfo na manga,
um míssil scud, uma bomba ou um submarino nuclear, um ditador excêntrico ou um
despeitado despótico pronto a fazer deflagrar o seu arsenal de armas químicas.
Um presidente da República Árabe da Síria e um peão no tabuleiro de xadrez das
negociações sobre o nuclear iraniano ou sobre a guerra na Ucrânia. Um trunfo na
manga de Moscovo ou de Teerão. Mais do que um presidente, atualmente és o
comandante de um exército quando a única política a que te reduziram é a do
combate ao «terrorismo»: um pretexto para transformar o país num terreno de
batalha. Um comandante condenado a ocultar a impotência de ter de fechar os olhos
à forma como uma coligação militar de países terceiros bombardeia desde há
vários meses o seu território, junto à fronteira turca. Perdeste totalmente o
controlo da situação, como presidente e como comandante, mas, frente às câmaras
insistes em não perder a pose.
No outro dia dizias na
televisão, sobre a atual crise migratória na Europa, que «o ocidente chora com
um olho enquanto, com o outro, espreita por uma mira apontada aos refugiados».
Quando ouvi esta frase tive a certeza de que estás ao corrente que, por aqui,
há quem diga agora que temos que voltar a falar contigo. Afinal, parece que há
quem pense, face à vaga de refugiados e ignorando os que ficaram para trás, que
é mais conveniente tolerar um regime que controla todos os movimentos dos seus cidadãos
e que detém e tortura qualquer forma de evasão. Há quem já lamente a partida
dos «velhos conhecidos» que governavam na outra margem do mediterrâneo,
políticos cujo nível democrático se media pela capacidade em manter os
problemas e aspirações dos seus habitantes longe das águas territoriais de
Lampedusa.
A grande questão que coloco é,
serás tu o homem da situação ou o verdadeiro problema? Quando te vejo a falar
dos foragidos do teu país, não posso deixar de pensar naqueles que, por aqui,
especulam sobre a possibilidade de combatentes do Estado Islâmico estarem
infiltrados entre os refugiados. Em quatro anos de guerra, os protestos por
reformas políticas deram lugar aos combates de rua, as manifestações aos
atentados terroristas, o estado árabe foi estilhaçado pelo Estado Islâmico,
contigo sempre sentado na cadeira do poder. A guerra civil deu lugar ao
terrorismo, pois a linguagem das armas só serve para soletrar o número de
mortos. Em quatro anos, a milhares de quilómetros de distância da fronteira
síria, mesmo as vítimas indefesas do teu país são consideradas, por alguns, uma
ameaça potencial. Um presidente assim não tem um olho que chora.
Ainda que não seja o caso na
Síria, cinco anos é mais ou menos a duração do mandato de um presidente de um país
democrático, onde é difícil escapar ao diálogo com a oposição e onde nenhum
chefe de estado pode sequer imaginar ser reeleito deixando um tal legado. Não
te ligo porque os refugiados fazem fila à porta da Europa e, na impossibilidade
de derrotar o Estado Islâmico, decidimos dar-te agora o benefício da dúvida,
quando, em aparência, enfrentamos um inimigo comum. Sobre os refugiados, os que
mais resistiram, os que tentaram sobreviver por todas as formas antes de
finalmente desistir, os últimos a acreditar em ti, são os mesmos que esperam
agora à porta da Hungria e da Croácia. Sobre o Estado Islâmico, sem um poder
que consiga convencer as fações armadas da oposição a regressarem à política e
a enfrentarem-se nas urnas, o grupo radical vai continuar a ter terreno de
manobra, por entre o caos. E o presidente que continua a bombardear os bairros
partidários da oposição em Homs e Aleppo, não é propriamente a pessoa mais
indicada para restabelecer o diálogo.
Ligo para te lembrar que, no
mês passado, morreram mais 2040 pessoas na Síria, 40% das quais eram mulheres e
crianças, vitimadas pelos bombardeamentos aleatórios da força aérea síria.
Desde a tua entrevista, na quarta-feira, mais 200 pessoas morreram, a maioria
sob as bombas das forças fiéis ao regime. Quando vejo os refugiados sírios a
caminharem ao longo das linhas de caminho-de-ferro sérvias, lembro-me de uma
das últimas entrevistas de Kadafi na televisão. Longe da tua pose
imperturbável, o antigo dirigente líbio, levantava as mãos aos céus para
afirmar, «o meu povo está pronto a morrer por mim». Quando vejo os grupos de
dezenas de refugiados, com uma câmara-de-ar como colete salva-vidas, a bordo de
um barco insuflável ao largo da ilha de Lesbos, vejo que o teu povo já não quer
morrer, nem por ti, nem contigo.
Liguei-te para finalmente
falarmos, mas como não atendes, deixo-te a mensagem.
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