Helena Matos
Os cortes na Segurança Social
vão acontecer inevitavelmente. Mas se um candidato disser isto sabe que cria o
caso da campanha. E estamos nisto há vinte anos, desde o Livro Branco do tempo
de Guterres.
Ao assistir a estes primeiros
dias de pré-campanha (como se distinguirá a pré-campanha da campanha
propriamente dita?) recuei aos tempos da neutralidade activa. Uma expressão que
definia a atitude que teoricamente Portugal ia manter em Angola perante os três
movimentos a quem aquele país ia ser entregue e que na prática se traduziu por
um favorecimento activíssimo ao MPLA.
E esse reencontro com a
pretéria “neutralidade activa” deveu-se não tanto ao habitual enviesamento das
redacções a favor da esquerda (é verdade que existe mas também é verdade que
pode ser ultrapassado, como provou Cavaco Silva) mas sim porque a cobertura
informativa dita independente que se dedica às campanhas se traduz, na prática,
por uma neutralidade activamente a favor do populismo.
A forma como se procura que
Passos Coelho ou António Costa digam que vão fazer cortes na Segurança Social é
disso um exemplo. A turma do soundbite sabe que o candidato que afirme que vai
fazer cortes na Segurança Social se transforma imediatamente no bombo da festa
mediática destas eleições. Logo tentam a todo o custo sacar a frase que sabem
assassina. Do outro lado, Passos e Costa garantem que não vão fazer cortes. E
os jornalistas repetem que eles não vão fazer cortes como se tudo não passasse
de um jogo, um jogo chamado “o que deve dizer um candidato”.
A hipocrisia que reina em
torno deste assunto é criminosa: os cortes na Segurança Social vão acontecer
inevitavelmente. Nem que começássemos todos a ter agora os filhos que não
tivemos já não íamos a tempo e a economia nunca crescerá de modo a compensar os
descontos que não foram feitos.
Mas se um candidato disser
isto sabe que cria o caso da campanha. E estamos nisto há vinte anos: a 28 de
Outubro de 1995, António Guterres tornou‑se primeiro‑ministro.
No início de Março
de 1996, foi constituida a Comissão do Livro
Branco da Segurança Social, um grupo de reflexão que deveria apresentar propostas de reforma do sistema, cuja
sustentabilidade já se considerava estar em risco.
Mas a “reforma da Segurança
Social” gerou de imediato sinais de resistência. Alguns desses sinais vieram do
próprio PS: ainda em 1995 teve lugar uma Convenção do PS em que as reformas em
preparação no domínio da Segurança Social geraram polémica.
Assim que começaram a sair
notícias sobre os trabalhos da Comissão do Livro Branco da Segurança Social
percebeu‑se que ia ser impossível
fazer passar a reforma: Correia de Campos, que presidia à
comissão, passou de imediato a ser rotulado como
“ultraliberal”. A discussão em torno da
Segurança Social transformou‑se quase automaticamente num
confronto maniqueísta em que os bons defendem a
imutabilidade do sistema e garantem que ele é
sustentável, e os maus são
aqueles que propõem alterações
no sistema, alterações essas rapidamente apresentadas não como procurando
garantir a sustentabilidade, mas sim como manobras do “lobby das seguradoras” e
do “lobby do plafonamento”.
Em 1995, a solução para a
sustentabilidade da Segurança Social estava no combate à subdeclaração de
rendimentos e na aposta à cobrança das dívidas. Havia contas fabulosas sobre o
dinheiro que o Estado devia à Segurança Social. Sem sequer se atentar que o
dinheiro do Estado é o dinheiro dos contribuintes, e que teriam de ser estes a
pagar as mirabolantes contas sobre essa dívida, garantia-se que, paga essa
dívida, a Segurança Social seria sustentável. Não seria mas isso não
interessava nada. Para cúmulo iam ter lugar eleições autárquicas em 1997 e o PS
não se podia dar ao luxo de ir para a campanha com os jornalistas e os autarcas
em pé de guerra por causa das cedências ao “lobby das seguradoras” e ao “lobby
do plafonamento”.
Qualquer semelhança com os
dias de hoje não é coincidência (a não ser que o PS de António Costa passou a
alinhar pelas teses daqueles que em 1996 inviabilizaram a reforma da Segurança
Social de Guterres): em 2015, ao lobby das seguradoras e ao lobby do
plafonamento juntaram a extrema-esquerda e o PS o tenebroso lobby da
especulação financeira. Já a mitologia em torno do combate à subdeclaração de
rendimentos e dos efeitos miraculosos da cobrança da dívida do Estado que
garantiriam a sustentabilidade da Segurança Social deu lugar à fé no
crescimento económico (podem quantificar qual teria de ser esse crescimento
para que ele pudesse garantir essa sustentabilidade?) e sobretudo na procura de
outras fontes de financiamento.
Os jornalistas, os
comentadores e os assessores adoram a expressão “outras fontes de
financiamento”. Tanto Passos como Costa já perceberam que a podem usar à
vontade. E os jornalistas repetem “outras fontes de financiamento” como se tudo
se resumisse a um abrir e fechar de torneiras como nos velhos problemas da
escola primária.
Mas que fontes são essas? As
portagens como sugeriu António Costa? Mas as portagens nem sequer chegam para
pagar as PPP rodoviárias! As empresas de capital intensivo porque empregam
menos pessoas? Mas não são essas mesmas empresas aquelas que nos passam a vida
a dizer que devemos proteger porque não só pagam melhores salários como pela
sua própria natureza mais tecnológica empregam mais jovens e fogem menos ao
fisco? Com o dinheiro dos impostos? E o dinheiro dos impostos nasce nas
repartições de Finanças? É que a não ser que isso aconteça não vejo como não é
isso um corte: o dinheiro dos impostos é dinheiro que se corta nos rendimentos
dos contribuintes.
A não ser que alguém “dê um
tiro no pé”, PS e coligação não sairão, em matéria de Segurança Social, do discurso
das fontes alternativas até ao final da campanha. Tudo indica que também não se
ouvirá daquelas bocas uma palavra sobre o que farão caso não consigam maioria
absoluta. E os radicais, a quem os jornalistas, e em boa parte os líderes
democráticos, reconhecem uma espécie de superioridade moral, acusarão tudo e
todos sem que ninguém os questione sobre as consequências das suas propostas.
Não é por acaso que nos
confrontamos com protagonistas como Tsipras e Iglesias. Ou se quisermos numa
versão mais doméstica com aquela figura cujo nome agora parece mal pronunciar
mas que até há pouco era considerado imbatível nestas técnicas de campanha.
Politicamente eles fizeram-se em estúdios de televisão, especializaram-se em
acusar os outros e em não responder nada sobre si mesmos e as suas propostas.
Eles são também o resultado da neutralidade activa. Agora a favor do populismo.
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